segunda-feira, 6 de abril de 2009

PRONTIDÃO


O primeiro poema foi em pleno vôo. O segundo em calmo pouso sobre a lâmina do tempo. Vieram outros a desafiar a veia do poeta: exigir do poeta as palavras certas para traduzir aquele deslumbramento que o poeta sentia pela vida. Eis que o poeta entrou em prontidão: para tudo tinha um mote, para cada evento e circunstância sacava do embornal um poema pobre, às vezes embrulhado em papel de pão. Festejaram o poeta e o poeta virou artista. Ficou bobo, perdeu prumo e compostura. Cismou de versejar em velório, aniversário. Tanta rima, tanto metro que pegou o sestro de entortar a boca num esforço imenso. Mas isso vinha somar ao charme do poeta. O poeta doido, o poeta extravagante, o poeta em seu direito. Bem que aproveitou, beijou bocas que jamais lhe sorririam se não fosse poeta oficial, deu muitas entrevistas aos jornais, vendeu livros, ganhou fama, acumulou um capital. Mas não deu conta. Um belo dia, sem aviso prévio, o poeta desistiu de poetar.

2 comentários:

  1. Perfeito!
    O mundo corrompeu até mesmo o poeta, somos poetas? Poetas ainda existem? Será que poetas da internet são mais poetas que os poetas "oficiais"? Quem saberá?
    Um abraço!

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  2. A poesia tem passado, como instrumento antigo, obsoleto, de que já não preciso no presente.
    Ficou ali, no sótão, exposta ao pó do tempo
    e a uma nesga de luz que entra pela greta do telhado.
    De vez em quando me assalta. Resisto.
    Parece-me inútil como instrumento de tocar a vida. Afinal, está em todo lugar, faz parte do meu cotidiano, todo ano, toda hora. Virou coisa orgânica.
    Desconfio de que só faça sentido para quem não sabe que a realidade não é a realidade.
    Para quem nunca viu o azul de outra cor e, portanto, ainda não descobriu que aquilo que se vê resulta de mera química ótica,
    conjunção passageira que nos habita num certo momento.
    A poesia faz sentido para mariposas que procuram luz e desejam extasiar-se.
    Para os que se arrepiam com revelações, até os cabelinhos do cu.
    Para quem gosta de chorar e rir à toa, só para comprazer-se.
    Ou para os estetas que sonham construir um mundo novo – e diferente deste que se nos dispõe.
    Que fique lá, onde jaz. E que ninguém ouse transportá-la do meu sótão, para fora do meu alcance.
    Abração do Sávio

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