quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

CARTAS

Setembro/2001

Caro Totonho,

Feliz em saber que deu tudo certo. Por mim, nunca tive dúvidas sobre o poder emanancial das petúnias sobre o nosso programa de qualidade. É realmente incrível como, a cada dia, Margarida grita mais baixo e Afonso consegue encaixar o chapéu no cabideiro a 6 metros e quarenta centímetros de distância. Sabe o que isto significa? Que a camada de ozônio não perde a mania de filtrar os átomos de angustura com uma voracidade espantosa. Jamais esquecerei o dia em que o nosso Lopes adentrou o cenário com os olhos esbugalhados e aquelas orelhas de ébano, prognosticando o advento das hordas budistas sobre o viaduto das almas. Vocês riram, mas eu, no íntimo, sabia que o nosso Lopes tinha um encontro marcado com o chupa-cabra naquela mesma noite e por ele foi abduzido. Deu no que deu e hoje vocês todos sabem que a vida é muito maior do aquele buraquinho no sofá da Jussara. Não deixe de me posicionar sobre o ciclo das amnésias, OK?


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Agosto/97

Amigo Pereira,

Segue o material que lhe prometi para observar o cio dos pernilongos. A lupa só funciona se você pingar duas gotas de nanquim em cada olho vivo. Em casa alugada, feche a cortina da janela das crianças que é por onde esses coleópteros de bico fino preferem escapar no inverno. Se for verão, ligue o liquidificador e bata duas claras em neve, espatule as paredes da sala do vizinho e leve o seu bichinho de estimação ao shopping mais próximo. Nunca – mas nunca mesmo! – ouse operar sob lâmpadas halógenas. Os resultados poderiam ser percebidos em Singapura. Prefira sempre o estrôncio para determinar a distância entre o ápice das asas e cuide de incensar a imagem de nossa senhora escondida no relógio da cemig. Já ia me esquecendo do mais importante: o Hermes vai passar manteiga no buraco das fechaduras antes de tudo começar. Qualquer dúvida me ligue.


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Fevereiro/2003

Antônio Victor meu bom,

Além disso, tem outra coisa: sempre que entra pelos meus ouvidos o batuque de um pedreiro martelando o tacho fumegante de goiabada cascão, me emociono às lágrimas. Penso nos pobres japoneses que criam leitõezinhos em prédios de 18 pavimentos. Lembro de vovó Isaura e seu vestido de seda transparente, deixando entrever a ponta dos mamilos pretinhos. E, acima de todas as coisas, me dou conta de como deus é enorme em suas faculdades de fim-de-semana, em Lafaiete ou Divinópolis, forjando advogados de porta de cadeia com a missão de promover a cidadania renascentista que todos admiramos com fervor. Não dá outra: é ouvir Carlinhos Brown no toco do meu redifone e a vida volta ao seu curso, anus beliscam carrapatos no dorso das vacas, sirenes enchem a noite de alegria e meninas de rua mijam nos canteiros da nossa jovem capital. Ainda bem que tem remédio pra tudo. Me avise quando Jonas vomitar.

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Dezembro /2002

Suzana Querida,

A torre de Pizza acaba no deserto de Catamarã. Quando penso nos anos que perdi tentando compreender o meu professor de trigonometria dá vontade de mergulhar no Arrudas e sair lá na frente, nas ilhas virgens do Mingu. O problema é que eu teria que braças léguas rio acima e meu médico continua afirmando categoricamente que o único exercício que me posso permitir é pastel de angu. Obedeço, contrariado, mas obedeço. Aprendi desde criança que os mais velhos não são assanhados por acaso. Ao contrário, têm bons motivos para agir assim, babando nas coxas das mocinhas e fritando minhocas em caçarolas de chumbo. É como dizia Percília em seus momentos de fúria: as armas assinaladas não fazem a virtude dos barões nem são capazes – nunca serão! – de erguer impérios em proveito próprio, mas sempre na perspectiva do admirável mundo que já começa a amarelar na linha do horizonte, trazendo consigo bandos de gansos destramelados cuja íris refrata o espectro de Netuno. Concordo plenamente.

O CAOS SOBERANO

ou: DEUS É O DIABO


Hoje amanheceu um belo dia vazio, propício ao consumo de ventos. O trânsito de automóveis não flui com a mesma normalidade. Ressaca de assassinatos. Nenhum pedido de resgate. Nenhum alerta ao corpo de bombeiros. A polícia descansa. Um homem sem ninho se recolhe no vácuo de notícias, reclama um decreto de calamidade, reza para que amanhã despenque um avião dos céus e entre as vítimas se encontre um vago parente próximo.

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Naquele tempo os homens andavam inebriados por alguma estranha onda que parecia ter o poder de arrancá-los do inferno em que viviam. Teciam frases como quem dá ração aos porcos. Fabricavam orações. Idolatravam a palavra da salvação. Acreditavam piamente que o universo lhes daria o que desejassem com fé e que o sucesso lhes seria concedido na medida do seu merecimento. Não se esmeravam por merecê-lo. Exalavam o bafo de cavalos ocupados. Trotavam em direção ao breu do céu.

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Tudo e Nada. Sopram-me fados renitentes, derramam vícios eruditos sobre o meu ofício, pelejam contra minha fé, me atraem e me repulsam – o tudo e o nada. Quero seguir os entrementes, a tessitura do drama. Acabo interrogando a origem da vida e a promessa da morte. Nada me acalma, tudo me devolve ao tormento da minha pobre filosofia. Nenhum registro de pane emotiva nessa existência calma e subalterna ao poder de tudo e de nada. O caos é soberano. A situação prossegue.

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O caçador exímio não se contenta com alvos fáceis. Seu código de ética não lhe faculta agredir a inocência dos descuidados. Antes de arremeter contra sua presa, o predador obriga-se a produzir um sinal de alerta. A arte da caça manda provocar o pânico, pressentir o rito da escapada, gozar o teso muscular do alvo que se esquiva. Esta é a delícia do caçador. Alvejar pelas costas, sem o susto da premonição, fere o mais elementar preceito do jogo persecutório. Negar à caça a chance de fuga ou retaliação é ato indigno do caçador ético. Pior: condena-o à inglória inominável de um dia deixar-se abater pela morte natural. Glória é morrer na luta.


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Há os que acham tudo divino. E os que enxergam a mão do demo em toda parte. Eu convivo com deus e o diabo na terra do sol. Acho tudo maravilha, enxofres e jasmins.

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Sonho juntar em mim todas as outras partes desgarradas de mim. Partículas do meu inteiro particular. Matéria do meu sangue, fonte da vida que corre em minhas veias, que me nutre, que me cresta, me dá sede. Hoje não tenho idade. Acho graça de viver. O tempo inscreve em minha pele tristezas e alegrias rupestres, nascidas de todas as eras. A terra é o meu berço, minha origem. A poeira é terra dando adeus. Mas é de barro que se faz meu sonho: de esperar a chuva.

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Rejeitar a idéia de deus é o sinal mais evidente do limite da mente humana. Quando não se compreende o mistério da obra universal, convém atribuí-la a deus, ao menos em reverência ao caos engendrado nessa obra. Não ao deus das profissões cegas de fé, mas ao deus gerador da matéria, fonte da energia e ordenador do movimento perpétuo. Acaso que deus é esse? Não é possível alcançar o seu mistério. E qual é o problema em conviver com o mistério admitindo a sua presença inarredável na equação do nosso imenso esforço de entender esse mundo? O limite do homem é a impossibilidade de admitir tudo e qualquer coisa que não seja capaz de compreender e explicar. O mistério habita entre nós. E nos convida a participar da obra da criação. Não há como recusar o ofício.

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Amar não é preciso. Às vezes, sem aviso prévio, uma força de atração muda a órbita dos planetas e o tempo vai para o espaço. Nós que vivíamos sobre um disco plano, à borda de abismos insondáveis, mergulhamos no vácuo da paixão e voltamos ao ponto de partida. Outras luzes, outras conjunções. O que jazia inerte à beira do caminho emerge de repente e sinaliza marcos de restauração. Dormimos ultimatas e acordamos primatas, graves de filosofia, escovando os dentes e interrogando a existência diante do espelho. Tudo porque um cometa atravessou o nosso céu e - nada como um dia após o outro – um salto quântico se anuncia para as próximas horas. O mundo nunca mais será o mesmo.

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Em caso de emergência, sustentar o silêncio. Buscar palavras que sempre existiram no ar, na voz dos animais, nas águas, no coração das pedras. Pressentir o som da pronúncia antes de se pronunciar. Poupar o próximo das reiterações, a não ser para recompor convenções. Devolver à palavra o seu sentido original para que ela possa suportar conotações sem perder o senso. Fazer uso da matéria elementar para cifrar a nota do cotidiano. Não se deixar transportar pela emoção, a menos que ela tenha manhas de provocar o riso ou revelar o ridículo da existência. Ou simplesmente calar e confessar que faltam palavras.

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Passado o susto dos trovões, o vivente empina a fuça e se encanta com o azulão do firmamento, o cheiro bom da magnólia, a magia do negro manto estrelado, a possibilidade de esmerar-se na caça, às vezes não sendo possível saciar a fome do seu desejo, mas sempre aprendendo uma nova técnica de conquista ou resignação. Dependendo do revés, a vida pode crescer ou encolher.

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Custou mas chegou. A humanidade começa a desconfiar que nem toda matéria tem cor, tem sabor, tem textura, tem volume acessível aos seus sete sentidos. A ciência finalmente se vulgariza. Inaugura-se um novo sonho alquímico: o poder de atrair ou repulsar a energia quântica pela força do pensamento construtivo e da querência. Tudo sob controle. Indiferente à proliferação das seitas, a famigerada dama continua afiando a foice para a ceifa inexorável. Amanhã será outro dia.

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Com o cérebro partido em hemisférios, os animais superiores tentam se ajeitar em seus dois cômodos. Procuram caminhar em equilíbrio, perder a compostura causa muito desconforto. Uma mão procura a outra, precisa compensar o gesto opositor. O mínimo tropeço é capaz de tirar o sono desses animais. Perder o prumo pede internação e terapia. Louco é o animal que não se ajusta a esta bipolaridade, ficará marcado por cortes e mutilações. O doido se adivinha pela atitude polar e solitária. O gesto não correspondido pela outra parte – mensagem sem resposta – é o primeiro sintoma do estado de loucura. A lei exige simetria. Este é o padrão da criação, o código de barra que vem de fábrica e precisa ser interpretado pelas máquinas leitoras. Portanto, animais bipolares, tratem de alinhar-se aos seus hemisférios. E não desprezem suas gravatas. Elas são o fiel da balança.

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Aos mágicos e adivinhadores se reserva a quarta vala do oitavo círculo do inferno, onde ainda têm muito o que fazer. Sublimar a realidade, esse tributo insuportável. Inventar a alma. Iludir pobres diabos a quem nunca tocou a mensagem do real. Aliviar o peso da matéria que pesa sobre a sua existência condenada à culpa sem esperança de redenção.

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O que eu amei demais foi sua coisa inteira, sua arquitetura multimídia, seu design contemporâneo do porvir, o seu poder de aparecer e sumir do mapa sem perder o seu lugar em cena, a capacidade de dispor o corpo a serviço da sua alma, usar máscaras que são a sua cara, pronunciar o som das palavras com o timbre das pedras e dos metais.

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Longos dias e noites eu ouvi estarrecida maravilhas e misérias eloqüentes. Meu semblante congelava o riso e tecia músculos dormentes entre o espelho e a espada. Longas horas eu gastei me devorando de mistério e culpa, bolinando o feminino rejeitado em líricas lembranças e promessas pérfidas. À minha frente, o macho em plena onipotência, fragilíssimo, quebrável em mil cacos de demência santa. Longa estrada percorri sedenta de mim mesma, estranha de mim mesma, nula e plena. A sabedoria, a calma, o movimento, onde andavam? e por que me abandonavam nessa estrada triste? Eu, que era doce, me amarguei e fui tentada pelas artes da esperteza. Dentro de mim talvez morasse há muito tempo um duende mórbido. Foi quando coloquei de molho minhas barbas, tripulei embarcações do coletivo inconsciente, revirei baús de antigos mapas. Novos rumos apontaram para a ilha do farol em pleno mar mediterrâneo, eu náufraga. De repente, brotaram palavras duras, um jorro incontrolável de memoriais palavras querendo nascer a qualquer custo, a fórceps, marreta, dinamite, qualquer jeito que me libertasse para sempre deste jugo insano e projetasse em minha vida outra vez, de novo, o sentimento do mundo, vasto mundo.

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só pode existir uma explicação para a pessoa que cisma de viver escrevendo: uma inarredável urgência de traduzir o sentido da vida e descobrir que para isto tem por único recurso resgatar a raiz de todas as palavras que já ouviu alguma vez em algum lugar e que não foram suficientes para esclarecer o que ela queria saber da vida apenas lhe deram uma vaga noção do que ela suspeitava e então tentar recompor a trama da linguagem para imaginar a vida a partir das palavras que ela registrou desde o primeiro sopro e que depois de um certo tempo passaram a não prestar um bom serviço ao seu entendimento das coisas e aprender a pronunciar de outro modo essas palavras já sabidas que de repente assumem um novo sentido para ela e registrar sobre uma folha branca de papel ou uma tela vazia de computador essa nova pronúncia descoberta com prazer terrível e é muito provável que dessa tentativa ninguém jamais tome conhecimento além dela própria esta pessoa que cisma de viver escrevendo

ANIMALIA (contos)

AMOR DE PACA

Tá certo que o Ademar me pegou numa hora de fraqueza, sentindo falta de homem no meu canto. Foi chegando de mansinho, sem forçar a barra, até que um dia seu olhar brilhou no meu e eu senti a fome dele crescendo pra cima de mim, desesperado de explorar a minha gruta. Fazer o quê? Perdi a pose. No meu lugar você faria a mesma coisa, minha filha, porque o cara é bom de serviço e hoje em dia competência é artigo raro, você sabe muito bem disso, lembra aquele bonitinho que te decepcionou pela falta de poder? Pois é. Acabei dando mole e quando vi já era tarde, estava amando o cafajeste, pior ainda: dependendo dele pra ser feliz. Uma coisa é um romancezinho desses sentimentais para enganar inocente, gozar são outros quinhentos. E eu gozo demais com o Ademar, o safado tem a manha de me deixar de quatro. Sabe a que horas ele gosta de me procurar? Você não vai acreditar: cinco de manhã. Bate a campainha lá em casa todo dia de madrugada, diz que gosta de pegar a paca quente no ninho, uma tara dele, sei lá. Tive que me sujeitar. Depois da transa, uma duas três vezes, ele toma uma chuveirada, enquanto eu sirvo um cafezinho na cama e às 8 e meia ele já saiu para o trampo dele, me deixando bem disposta para enfrentar o dia. Virou meu vício, minha ginástica matinal. O que ele faz na vida? Sei lá, diz que é corretor imobiliário, não quero nem saber, para mim ele é o meu trepador profissional, o bombeiro que vem desentupir os meus canos todo dia, o meu roto-router, meu massagista, meu psicanalista. Por falar nisso nunca mais procurei o Dr. Edvaldo, joguei fora o meu rivotril, ando com a cabeça boa, até a enxaqueca sumiu. Recomendo o tratamento, Marinalva! É uma maravilha! Te emprestar o meu Ademar? Que que é isso, minha filha? Vai à luta! Esse é só meu, ninguém tasca, é o meu mucamo e o meu feitor, faz de mim o que quiser. O quê? É claro que eu pago bem. Ele nunca exigiu, tem a delicadeza de sempre me pedir emprestado, diz que vai pagar logo que puder. Não faço questão, dinheiro serve pra quê? Não é pra dar prazer? Graças a deus a pensão que recebo do falecido dá e sobra. Ai, meu deus, quanto tempo eu perdi gastando com esses pacotes turísticos a Maceió sem saber que a felicidade estava aqui mesmo, pronta pra bater à minha porta todo dia de manhã e me transportar para o país das maravilhas, sem museu e sem igreja para visitar, sem queimadura de praia, sem aquele cheiro horrível de hotel 3 estrelas. Ficando doida, eu? Ai, Marinalva, você não sabe o que é bom. Olha aqui, minha filha, já são 11 horas, vou dormir, tenho que descansar, ficar prontinha pro meu Ademar, daqui a pouco ele chega. Tchau, me liga na hora do almoço, tá bom? Preciso comprar um terno novo para ele no shopping, você me ajuda a escolher?

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CADELA


Quis viver com ela para sempre e ela me disse: fica à vontade e vai embora quando for a hora. Quis morrer com ela e ela falou: agora é cinza, meu tempo de morrer já é passado. Tentei encontrar a palavra justa e não achei. Fiquei perdido ao seu redor, cego de luz, tonto de querer amar. Nunca me senti tão perto de uma estranha. Somente a ela ousei pronunciar a fórmula banal, te amo, e ela não me acreditou. Traçou um diagrama de macroeconomia para elucidar o meu amor patético. O buraco é mais em baixo, ela falou, amar são outros quinhentos. Propus fechar contrato de seis meses, com cláusula de prorrogação, mas o tempo foi para o espaço. Tudo se transformou em nada. Mera inscrição do transitório. Pós-matéria. O que sobrou? Salgar, selar e congelar a carne, filha do carbono e do amoníaco, para a rápida hora do banquete inacessível aos cães.


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CABRITA

Gostei do jeito que ele chegou varrendo o ambiente numa visada larga, sentou na primeira vaga, pendurou o chapéu na ripa da cadeira, pediu uma cerveja sem extravagar no gesto, me semblou homem decente. Tem uns que já entram com panca de bacana, sabe aquele tipo que olha por cima como se quisesse sem querer? Puro medo, veneno brabo. O cara vem aqui atrás de puta e morre de medo de puta, acha que é raça baixa, perigosa. Esse a gente atura pela paga, gosta de mostrar que tem dinheiro e se acha no direito de ser rude com mulher de zona, tratar no solavanco, mas em compensação despeja nota de cem na cara da gente, quase com raiva. A mulherada saca logo, tenta escapulir, mas a regra da casa é clara: freguês não pode ficar sozinho na mesa por mais de dez minutos, tempo suficiente para tomar fôlego no ambiente. Depois disso passa a valer o rodízio e a menina da vez tem que se chegar com um chamego e uma conversa de boavinda. A maioria pensa que a gente gosta é só de pica e de dinheiro, muito de vez em quando rola uma conversa boa que faz a noite mais apetecível, de pica a gente sente até enjôo pela fartura de toda noite, mas atrás dela vem dinheiro e profissão é profissão, não se recusa por capricho bobo.
Aquele não. Tinha o dom da simpatia, um sereno que chamou a atenção da tropa da casa. Lurdinha ameaçou tomar a dianteira mas era a minha vez no rodízio, espetei nela o osso do cotovelo e me precipitei para a mesa do elegante. Que dama não gosta que o cavalheiro se levante e puxe a cadeira para ela se sentar? Foi o que ele fez, e ganhou ponto comigo. Veio desfiando uma conversa rasa, clara de entender, que era viajante, estava cansado de estrada, fazia três meses não via a família, que passava ali na rua por acaso, viu a luzinha roxa e decidiu buscar conforto entre pessoas por quem a vida inteira sempre tinha a maior consideração, mulheres dedicadas à santidade de ofertar prazer e companhia a um sujeito desprovido de assistência, cansado sem ninguém, carente, longe dos seus. Tinha uma voz macia, gostosa de ouvir, e falava olhando bem no fundo do meu olho. Não avançou, não enfiou a mão nas minhas coxas, me carinhava só com o jeito de falar. Para esse eu dou de graça, só cobro a taxa da casa, foi o que pensei primeiro. Coisa difícil de acontecer na carreira prática, esquecer que é puta e lembrar que é gente. Naquela noite ele me deu o dom, quem milita na praça sabe o quanto vale essa prenda.
Caiu ficha nova na maquininha, a voz de Altemar Dutra cobriu a dele: veja só que tolice nós dois brigarmos tanto assim. Ele ouviu calado, respeitoso, de vez em quando fechava os olhinhos de saudade, me deu vontade de passar a mão no seu cabelo mas parei no meio da intenção, senti pudor não sei por qual motivo, e olha que pudor de puta é coisa séria, comichão de amizade periga virar paixão. Aí ele me chamou pra dançar, enrolou meu corpo com firmeza, encostou seu rosto e me deixei levar pelo salão ao seu comando, dava para sentir a inveja das meninas e uma coisa crescendo lá em baixo, cutucando o meu desejo. Ficamos assim abraçadinhos três boleros num bate-coxa muito mais gostoso do que trepada em colchão macio. Era tudo o que eu queria, rezei a deus para retardar a hora do consumo, adiar o rito de subir ao quarto
para extrair o carnegão, me deu o luxo de não me entregar muito fácil logo assim no primeiro encontro, vê se pode, coração de puta às vezes finge que amolece.
E ele teve a sensibilidade de compreender minha condição. Levantou da mesa, arranhou os meus cabelos com a ponta dos dedos, pegou a mão da Lurdinha e subiu a escada com ela para o quarto. Nem passaram vinte minutos e os dois voltavam ao salão, ele com um sorriso de satisfação que lhe dava um tom meio palhaço no rosto moreno, nisso eu nem tinha reparado antes. Pagou a conta e foi embora sem me dar adeus.

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O RABO FELPUDO DA RAPOSA

Ferrugens, trincas na parede, pane de telefonia, infiltrações, goteiras no telhado, invasão de marimbondos, trepadeiras vorazes, fiações avariadas, fusíveis de imprecisa resistência, portas crestadas, lascas no adobe das paredes, madeiras podres de chuva, cortinas rasgadas no salão de banho, efeitos deletérios do tempo sobre a matéria perecível – tudo a exigir urgente intervenção. Está passando da hora de tomar providências enérgicas – gritou Helena após o jantar – senão a casa cai. E deu um murro na mesa.
Durante exatos 40 dias, ela se dedicou ao projeto da reforma sem descansar um minuto. Redesenhou o jardim, refez o caminho das pedras, mandou plantar cerca viva, comandou, de chicote na mão, um exército de operários especializados em reforma e restauração: consertos, podas, replantios, correções da acidez do terreno. Ordenou a dedetização da casa, revisou os circuitos elétricos, contratou bombeiros para sondar encanamentos, pedreiros para repintar os muros e impermeabilizar paredes, trocou as telhas quebradas na última chuva de granizo. Nosso sítio virou um canteiro de obras, mas valeu a pena.
Ficou uma beleza! – comentei ao retornar de uma providencial viagem de trabalho que me poupou da sua fúria restauradora. Ela me olhou de cima a baixo, um olhar estranho, passou a mão sobre uma ruga do meu rosto, sorriu e agradeceu: - Gostou mesmo, meu bem?
No dia seguinte Helena saiu cedo e voltou com uma sacola recheada de compras. Aqui, meu lindo, comprei pra você, me passou um shampoo para disfarçar os cabelos brancos; ninguém agüenta mais aqueles molambos seus, jogou na minha mão três camisas listradas e uma bermuda que mais parecia florada de campo rupestre; abriu uma caixa de creme facial, aplicou um pouquinho nas rugas do canto do olho e começou a ler na bula os milagres do rejuvenescimento à base de pepino. Comecei a desconfiar que a sanha reformista estava longe de acabar, mas só fui ter certeza mesmo quando ela me passou um papelzinho: toma, marquei consulta com o Dr. Romero, quarta-feira às 3 da tarde, levei aquele retrato seu e ele falou que é coisa à toa consertar esse gancho do seu nariz, dar uma empinadinha nele. Sem dúvida, meu amor agora tinha projetos de me reformar. Queria consertar minha arquitetura barroca, passar verniz no opaco do meu feitio, patinar minha fachada castigada pelo tempo.
Relutei mas aceitei me refazer só para agradar Helena. Agora, me olhando no espelho, sinto que não sou mais eu, mas em compensação Helena anda muito mais feliz comigo.


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OLHOS DE VACA

Existe muito pouca diferença entre os olhos da vaca que eu conheci na fazenda do meu tio e os olhos de Percília. Ambos falam de uma tristeza resignada a uma sina que não ousam confrontar, como se não tivessem a mínima chance de mudar o rumo das coisas que notoriamente não agrada a nenhuma das duas. Os de Percilia revelam uma melancolia mais acentuada pelo traço da boca, crispada e curvada para o chão, talvez pelo fato de muito procurar sem encontrar um jeito de escapar ao seu destino, o que lhe deu pela vida afora uma triste fama de queixosa e reclamante contumaz. A vaca que eu conheci na fazenda do meu tio também me parecia sem a mínima noção do que fazer para evitar sua ruína, mas sustentava uma postura digna em sua ruminação silenciosa, me dava a impressão de estagiar um rito de preparação, como se já previsse a sua hora de deixar-se conduzir resignadamente à trilha do matadouro, e nem por isso cabia qualquer queixa, aquele era o seu destino traçado. No mais são iguais, os olhos de Percília e os olhos da vaca. E fui me apaixonar logo pela Percília, a vaca da fazenda do meu tio foi só um lampejo de admiração, desconfio que teria sido mais feliz com ela mas dessas coisas a gente nunca pode ter certeza absoluta.

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A HORA DA LOBA

Quando ela me abraçou senti a dureza dos seus ossos sob a pele e não pude deixar de pensar no viço daquele corpo de trinta anos atrás, cheio de carne e sangue latejante que eu sugava com furor adolescente. Ela também gostava de me pegar, me usava com proveito, sabia tirar prazer de mim. Agora estava ali como um balão vazio entre meus braços, demorou o rosto colado no meu, me apertou com força, me beijou.
- Câncer, soprou no meu ouvido sem que eu perguntasse nada, perdi doze quilos em três meses.
- Finalmente você conseguiu, respondi meio sem jeito, e nem precisou fechar a boca.
Zamira sempre teve gana de traçar deus e todo mundo. Não era gula, era uma vontade de comer, um apetite voraz que marcava sua fama no território. A turma se divertia em vê-la diante de um prato de comida, manejando os talheres como operária de fábrica, lambendo os beiços, estalando a língua, ronronando de prazer. A mesma sanha que espantava os homens que ela cismava de caçar em suas noites de loba. Não qualquer um, é bom que se diga. Fazia questão de escolher a dedo, observava, conversava, selecionava com critério e só partia para cima quando tomava opinião. Caçava o suficiente para matar a fome, não seduzia para colecionar. Poucos resistiam ao encanto de sua beleza rara, uma mulher à frente do seu tempo, nem aí para os tabus da burguesia, livre e dona do seu querer. Nunca foi vulgar, vestia-se com elegância simples, tinha a manha de conduzir seu corpo com graça, olhava nos olhos da gente, não sabia fingir, falava claro o que tinha que falar.
Vinte anos se passaram e a distância não tinha dissipado a presença de Zamira em minha vida. Vivia pensando nela, quantas vezes me sucedia indagar o que ela faria em meu lugar antes de tomar uma decisão, talvez porque só com ela me tinha sucedido a delicada experiência dos amantes que não querem pertencer um ao outro. Um belo dia partiu para Barcelona sem dizer adeus, perdemos o contato. De volta ao Brasil depois de longa temporada, ela telefonou marcando encontro e agora estamos aqui na calçada em frente ao teatro da imprensa, enlaçados num abraço terno, olhando-nos com certa estranheza e alguma intimidade que nossa história comum ainda nos concede apesar de tanto tempo separados. Eu tinha sugerido assistirmos a uma nova montagem de Molière, ela vacilou – Tartufo, de novo? Não é melhor tomar um vinho e conversar? Claro que era, dobramos a esquina e entramos no Saloon, velho ponto de encontro da turma, à la recherche.
Mesmo doente ela não tinha perdido a chispa, aquele jeito de agitar os braços e jogar os cabelos para trás enquanto fala, a mesma energia solta, ainda dava para perceber o brilho do seu olhar por trás do véu que começava a turvar a fonte original. O rosto descarnado deturpava a beleza dos seus traços e projetava seus dentes branquíssimos para fora da boca miúda. Falou da sua vida em Barcelona, de uma solidão incompatível com o seu jeito fácil de fazer amigos, da sua tormenta por não conseguir aculturar os machos da Catalunha e acomodá-los ao seu gosto de comer, sua inaptidão para firmar contratos de acasalamento, mencionou alguns romances sem conseqüência e, só para me deixar chocado, anunciou sua decisão de descansar da luta e viver em castidade.
Conta outra, debochei, você não conseguiria. Mas ela acabou me convencendo: três anos sem macho, acredite se quiser! E olha que não me fez falta por lá, só agora no Brasil é que voltou aquele velho comichão de caçar, mas aí adoeci e o desejo ficou no limbo. Senti uma ternura imensa por ela, peguei a sua mão, fiz um carinho com a ponta dos dedos sobre os seus cabelos ralos, enfraquecidos pela quimioterapia. Ela se esquivou, pedimos mais um vinho.
Carcinoma de colo de útero. Neoplasia do órgão de reprodução feminino. O ninho da maternidade injuriado por células que insistem em reproduzir-se sem controle. Ela tentou associar sua renúncia ao sexo, sua falta de vontade, à sorrateira instalação da doença, ainda que não produzisse sintomas visíveis. Chegou a perder a compostura, deixou escapar a queixa: por que logo eu? Você e mais milhões de mulheres com câncer de útero – respondi sem intenção de consolar – você e outros milhões de homens com câncer de próstata. Não há eleitos nesse processo, o acaso decide de acordo com sua herança genética, seus hábitos de consumo e sua capacidade de lidar emocionalmente com a angústia de viver. No mais, mais cedo ou mais tarde, todos nós adoecemos e isso é que é difícil admitir, que também somos frutos que maduram, caem do pé e apodrecem.
Zamira ficou um tempo em silêncio, olhos fixos nos meus, um sorriso suave nos lábios. Tem razão, disse, somos passageiros nesse trem, mas não pense que estou amargando por querer amargar, é que essa coisa causa disfunções, os hormônios se alteram, o tratamento é violento, a gente acaba perdendo o prumo. Caí na mão do sistema de saúde, me entreguei completamente, só agora consegui recuperar a autoridade e já decidi: não faço mais radio nem quimioterapia. Vou deixar rolar até o fim, só não posso esquecer de carregar na bolsa umas drogas para amenizar a dor que é danada. Se estou rumando para o fim vou tratar de fazer isso com dignidade, a céu aberto, e não na prisão dos hospitais, até a última força que me sobrar. Sabia que a Bélgica recebe hoje um grande fluxo de turistas, doentes terminais sem esperança de cura, em busca de uma morte misericordiosa? Lá a eutanásia é legalizada.
Achei que devia interromper: tudo bem, mas antes de tomar o rumo de Bélgica e o caminho da morte, proponho uma trilha alternativa: vamos lá pra casa, levamos mais um vinho, faço um jantar para nós, vemos um filme, você dorme por lá, acordamos amanhã e vamos matando a saudade com calma. Não vai ser num único encontro que vamos dar conta desse vácuo. Você já me contou quase tudo, como se essa noite fosse terminar em dois beijinhos e até daqui a mais trinta anos, meu bem. Temos tempo, e além do mais hoje não é um bom dia para morrer.

CRÔNICAS DO ENQUANTO

Tantas vezes eu quis morrer e destruir os objetos ao meu redor, jamais tive vontade de matar alguém que não fosse eu mesma nem acabar com qualquer coisa que não fizesse parte de mim. Meus surtos de violência atingem coisas minhas, tenho prazer em quebrar os meus cristais contra a parede da minha casa, meus espelhos, tenho ganas de despedaçar tudo o que me prende à vida cotidiana, despetalar a rosa dos meus sonhos, nunca fui capaz de agredir outra pessoa que não seja eu, por isso acho que não sou uma mulher perigosa como querem provar os promotores de justiça, afinal devo ter o direito de atentar contra a minha vida, só contra mim e mais ninguém. Ontem me ligou meu filho na obrigação de me convidar para o seu casamento em Goiânia e me ligou cheio de cuidados, afinal sou a única mãe deste único filho e não cairia bem ele casar sem a presença da mãe dele, mas ele quer escolher o meu vestido, o meu sapato, quer saber como vou me apresentar no casamento dele, quer mandar alguém para receber-me na rodoviária e garantir que não vou chegar bêbada ao enlace dele, não quer passar vexame, faz questão da minha presença mas quer me pentear para a cerimônia. Ninguém da família dela pode saber que eu já cumpri penitência nessa vida, poucos saberão que hoje vivo mais ou menos equilibrada, escolhi um vestido verde musgo e me disseram que é a mesma cor do tapete onde os noivos pisarão na entrada da igreja, então eu disse melhor assim rolaremos pelo chão ton-sur-ton e todos os padrinhos e convidados pisarão sobre nós com a elegância deles, ainda não sei se devo ir ou não. O que você acha?


LEADS POÉTICOS

BLUE NOTE

Havia promessas de uma eterna vida em movimento

e o que veio era uma vigília tensa, de gesso.

Um passo, salto, no sulco do tempo

- a corda do tempo percutida -

sem sono, sem pausa.

Aquela velha dor que a uns interna,

a outros expatria.

Eu me perguntava: a vida é isso?

Procurava rostos amáveis.

E andava olhando o chão à cata de moedas perdidas.


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PSI

Depois de Freud
e da psicoterapia
não tem escapatória:
cada louco com sua nomia.

Eu, por exemplo, descobri:
sou um neurótico normal,
me tranquiliza o trivial.

Achar eu achei,
mas não me felicita.
Procurava o Deus total
e, quando muito,
encontrei um deus que caga.

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VINHO DERRAMADO

Não, não foi preciso uma gota de sangue.
Tudo aconteceu no império da agonia.
Durante o sono dos cristais.
Invadiu minhas veias.
Vazou por meus poros.
Restaram amizades fúnebres.

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SANS PAROLES

Preciso abrir mão das palavras.
Elas pesam demais. Exigem demais de mim.
Desconfio que me traem.

Preciso libertar-me do peso das palavras,
substituí-las por gritos e sussurros
que falem melhor de mim.

As palavras fogem da verdade,
afundam-me no lodo do abismo.
O que procuro nelas?
Decifrar o que a mim não se revela nunca?

Tento explicar o meu querer errante
e as palavras me deixam de mãos vazias,
coração vazio.

Acerto no gesto, erro na palavra.
Mudo é o meu destino.

Te perdi pela palavra? Estou perdido.

Apenas um canto sem palavras nesta hora vaga.
Voz que não se pronuncia: um sopro.

Procuro loucamente um verbo intransitivo,
absoluto,
que depois dele sobrevenha a calma,
e o silêncio.

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só de ter nascido

sem querer

me cabe

o meu lugar

de ser

até morrer


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MERCÊS

Nas vilas cruas
se cozinham cérebros
em banho morno, e
nada concerne:
vaga por ali um nativo estranho
que nas horas plenas quer gritar
não sabe o quê,
apenas quer gritar para agitar
as copas das árvores
imóveis.

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DE SUSTO, DE BALA OU VÍCIO
para Vadim

Um homem equilibrado.
Um homem que vê uma estrela e diz: estou vendo uma estrela,
logo estou vivendo.
Um homem que ainda não morreu,
que diz bom dia para saber que ainda não morreu e se aniquila
diante do dia bom e claro e belo e grande.

Um homem sem rosto pousado em calma sobre uma colcha de retalhos.
Um homem em retalhos, olhos de mosca multifacetados,
cego-sensitivo.
Homem nenhum - nenhuma figura - apenas manchas na retina.

Um homem que poderia fazer milagres mas não pode.
Um homem lispector encalhado numa palavra-pedra,
perdendo anos e anos de vida por isso.

Um homem que ouve e lê e vê todas as palavras em todos os lugares:
um homem em busca de revelações.

Um cavalo pastando.
Um bode de óculos aparando a grama do campo de golfe,
quem diria!

Um homem esperando na janela como uma virgem do interior:
olhando a lua apaixonado e louco.


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GHOST LOVER

Cuidado:
meu desejo te rastreia.

Toda fome é dela mesma:
vontade de devorar-se.


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Quanto mais papel-moeda, mais papel-filosofia.


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EU E OUTROS

O outro me observa
- e não me deixa passar.

O outro sou eu,
está em mim,
e não repara em mim
como eu queria.

Por isso, de tanto me obrigar
sou impreciso.

Nem verdade, nem impostura.
Verdade e impostura simultaneamente.

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Hoje não tenho nada.
Vou juntar dinheiro
Vou juntar coragem
Vou juntar amor.

Um dia gasto tudo de uma vez.


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MÚSICA

A maravilha dos ritmos eternos,
apurada poesia: eis o que quero.
Nem show, nem chororô de sax,
nem pandeiro, quero o som inteiro
inclusive o mítico silêncio
tilintando vidros e corcéis
atropelando ventos.

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SOTURNO

Queria ficar alegre
pelo menos por um dia.

Sempre me faltou o dom da alegria.

Pelo menos por um dia
me podia suceder o claro da alegria
só pra me tirar dessa agonia.
me arrancar da sombra desse dia,
me levar onde eu queria
e não podia.

Pelo menos por um dia a alegria
- ainda que tardia.

Um dia, se deus queria,
era possível me livrar desse ingresia,
me animar no fogo da folia,
viajar no vento, ventania.

Pelo menos por um dia
- quem diria!
eu seria dono da alegria.
Eu com ela, ela comigo
por um dia, só um dia
inteiro de alegria.

Isso me bastaria.
Sonhar demais, seria?
Nada mais sucederia
nesse dia. Só alegria.

No outro dia eu voltaria
ao normal de todo dia,
com uma baita saudade da alegria.


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TERMINAL

Coisas tristíssimas brotaram
entre o meu querer e o meu poder.
Fizeram de mim um otimista incorrigível:
nada será pior amanhã do que foi ontem.

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Agora tenho certeza de nem ser parente de deus.

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ERA TEMPO

Passou o tempo do outro,
a minha hora chegou.
Agora sou eu sozinho,
no meio de todo mundo.


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DECLARAÇÃO DE AMOR A MARIA DO CÉU

Pouco ver-te não é triste.
Pungente é tua ausência
quando a vida dá sinal de vida
e não te tenho ao meu lado.

Onde estavas, meu amor,
quando Maria do Céu me encantou
- e eu só pensava em ti?

Onde andavas, meu amor,
quando Maria Parda me fez chorar
- e me perdi longe de ti?

Foi muito demais para eu sozinho.

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SE EU FOSSE VOCÊ

brigava com ela saía pelado tomava cachaça fazia arruaça pisava na bola entrava de sola cortava o barato sentava o cacete batia na cara cagava na moita falava rasgado rasgava o contrato baixava um decreto cobrava pedágio pulava esse muro virava essa mesa soltava os cachorros armava um banzé soprava a fogueira ficava uma fera tacava pimenta criava um rebu tocava punheta tomava no cu amarrava essa égua fumava maconha mijava no tanque metia a colher cantava de galo trancava com chave roía essa corda fazia pirraça pulava do oitavo tomava mais uma ficava na boa pensava direito botava uma pedra tentava esquecer passava por cima tirava de letra matava no peito jogava pro canto deixava pra lá partia pra outra pegava essa estrada sumia no mapa saía correndo ficava mais calmo pintava esse rosto mudava essa cara passava batom usava colírio não dava bandeira fazia checkup pegava no sério tocava um negócio abria um boteco comprava uma casa plantava batata nadava de costa deitava na cama rolava na fama transava uma ioga gozava essa vida matava essa aula ligava essa trompa tirava essa roupa entrava na dança botava mais fé andava no vácuo voltava pra casa mudava o canal não dava conselho virava esse disco calava essa boca fechava a matraca parava com isso

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Será que uma bomba explode?