terça-feira, 15 de setembro de 2009

TRAMAS












Justo quando eu voava distraído
me prendi no visgo de tua teia de estrelas.
Rendido e
m tua trama de renda.
Refém-capturado para ser teu alimento.

Hospedei-me em tua cama de seda
sem saber da sina de me perder
no labirinto do teu casulo.

Teu véu de organza e tule
tece a rede ao meu redor.
Encapsulado, capitulo.

Minha vida por um fio.

Não há como escapar: agora sou novelo.
Teu feitiço me enredou.

terça-feira, 23 de junho de 2009

MALDITO CORAÇÃO

A voz de Ângela baixou um véu de tristeza no fim daquela tarde morna, um sentimento de doença sem cura que costuma assaltar os corações simplórios quando vem chegando a noite do domingo e o balanço do fim de semana que começou cheio de promessas acusa um débito de emoções verdadeiras, uma fartura de nada, não muito diferente de uma noite qualquer. Falhaste, coração, me alegra que tu sofras. Por que razão me conduziste ao lugar onde me encontro se sobre ti recai toda a conseqüência desse descompasso? Hei de rir de ti, causador da tua própria injúria, quando poderias semear a paz preferes provocar a arritmia que parece livrar-te do tédio mas te condena a uma diástole irremediável, um estado crônico que acaba virando outra rotina que te amarra no contratempo, no avesso do tempo, afinal o mesmo tempo o tempo todo. Que lástima me dás! Naquele dia em que eu poderia ser feliz abriste um desvio à minha frente e me tentaste com a trama imprevisível, me conduziste ao insondável como se todo gosto tivesse que valer a pena enquanto os simples prazeres estavam ali mesmo ao meu alcance, era só querer e estender a mão para colher o sumo da alegria passageira, mas não, tudo para ti carece merecer padecimento. Aquele dia estava escrito para eu ser feliz e só não fui por tua causa, maldito coração, até o pranto que chorei ficou perdido sem que o motivo do nosso desvario tivesse a menor noção do acontecido. O que queres tu de mim?

segunda-feira, 6 de abril de 2009

PRONTIDÃO


O primeiro poema foi em pleno vôo. O segundo em calmo pouso sobre a lâmina do tempo. Vieram outros a desafiar a veia do poeta: exigir do poeta as palavras certas para traduzir aquele deslumbramento que o poeta sentia pela vida. Eis que o poeta entrou em prontidão: para tudo tinha um mote, para cada evento e circunstância sacava do embornal um poema pobre, às vezes embrulhado em papel de pão. Festejaram o poeta e o poeta virou artista. Ficou bobo, perdeu prumo e compostura. Cismou de versejar em velório, aniversário. Tanta rima, tanto metro que pegou o sestro de entortar a boca num esforço imenso. Mas isso vinha somar ao charme do poeta. O poeta doido, o poeta extravagante, o poeta em seu direito. Bem que aproveitou, beijou bocas que jamais lhe sorririam se não fosse poeta oficial, deu muitas entrevistas aos jornais, vendeu livros, ganhou fama, acumulou um capital. Mas não deu conta. Um belo dia, sem aviso prévio, o poeta desistiu de poetar.

sexta-feira, 6 de março de 2009

CURRAL DEL REY

Esta é a cidade que eu amo
e recuso.

A cidade maravilhosa e
pervertida.

A cidade que me acolhe e me expulsa
para perto dela.

Esta é a cidade zoneada,
A cidade das cercas,
das trincheiras,
da Contorno: povo pra lá, elite pra cá.
Funcionários no meio.

Esta é a cidade dos homens,
a cidade dos sonhos,
a cidade possível.

Esta é a cidade de Aarão,
a cidade adventista,
a terra prometida da República.

A cidade confidente,
fuxiqueira,
rezadeira,
e farrista.

Este é o triste horizonte que marcou as retinas
do poeta da pedra e quem sabe fez dele
uma estátua mineral.

O belo horizonte que comportou a modernidade
a ponto de atrair para cá visionários e mercadores
com todos os seus talentos
e suas babas venéreas.

Esta é a minha cidade,
meu horizonte belo e triste
até não poder mais.

Este é o feudo da realeza,
o gueto da burguesia,
o burgo da tropa (sempre)
disposta à luta.

Este é a cidade medida e desmedida,
composta e desfigurada,
a cidade que ainda cheira a magnólia
entre vapores de carbono e sulfa.

A cidade que não escolhi
mas que se ofereceu aos meus desígnios
e encaixou-se ao meu destino.

Aqui é onde o Judas perdeu as botas
e eu atolei as minhas.

Esta é a cidade-laboratório
que divertiu os cansados da paulicéia
numa festa pândega que afinal se revelou
pura decepção: buscar o futuro em Minas?
Qual louco sonharia?

Esta é a cidade dos alarmes, das buzinas,
das sirenes - a cidade militar e hospitalar.

Esta é a cidade dos cães educados,
que esperam abrir o semáforo para atravessar na faixa.

Este é a cidade dos quatro cavaleiros do apocalipse.
A cidade dos artistas que vão embora fazer sucesso lá fora.

Esta é a roça grande onde os fazendeiros do interior
plantam rebentos que vão virar advogados,
médicos, engenheiros e, muito frequentemente,
residentes: voltar ao lar paterno para administrar
o café com leite da família.

Esta é a cidade viva que Mucchiut ponderou
com a cidade dos mortos.

Esta é a cidade dos botequins,
das moças bonitas
e das favelas urbanizadas.

A cidade que sonhou Paris
e acordou Macondo.

Esta é a cidade que me cabe,
e me concede loucos arrebóis.


quarta-feira, 4 de março de 2009

Naquele tempo os homens andavam inebriados por alguma estranha onda que parecia ter o poder de arrancá-los do inferno em que viviam. Teciam frases como quem dá ração aos porcos. Fabricavam orações. Idolatravam a palavra da salvação. Acreditavam piamente que o universo lhes daria o que desejassem com fé e que o sucesso lhes seria concedido na medida do seu merecimento. Não se esmeravam por merecê-lo. Exalavam o bafo de cavalos ocupados. Trotavam em direção ao breu do céu.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

DEUS É O DIABO

Hoje amanheceu um belo dia vazio, propício ao consumo de ventos. O trânsito de automóveis não flui com a mesma normalidade. Ressaca de assassinatos. Nenhum pedido de resgate. Nenhum alerta ao corpo de bombeiros. A polícia descansa. Um homem sem ninho se recolhe no vácuo de notícias, reclama um decreto de calamidade, reza para que a qualquer momento despenque um avião dos céus e entre as vítimas se encontre um vago parente próximo. Liga a internet e nada, as mesmas de ontem. Abre a janela e nada. Tudo onde sempre esteve. Chama o elevador, compra um jornal na banca, vasculha as manchetes do dia e tudo insiste em não acontecer. Até agora nenhum registro de pane emotiva em sua vida calma e subalterna, mas aquele dia sem notícia estava irritante demais, até que uma dor insuportável colou-se à sua pele.
Sabe-se lá que alegrias e tristezas o acompanharão em seu retorno ao lar, tudo vai depender da sua vontade de voltar ao sítio onde se hospeda na estranha companhia de mulher e filhos, ou de vagar sem rumo mendigando um gesto benfazejo que dificilmente estará em condições de merecer de pessoas sensatas, tudo vai depender do conforto imaginado no colchão da sua casa temporária ou na sarjeta vitalícia da rua, às vezes é preferível cochilar ao relento a desmaiar sob um teto falso.
Entra no bar da esquina, pede uma cerveja para passar o tempo, experimenta uma nova marca de conhaque, observa a rua vazia, a copa das árvores imóveis, o cão malhado que cochila no meio do asfalto crente que hoje é mesmo um dia traçado para nada acontecer, até que um motorista embriagado pela monotonia desse dia resolve passar por cima do cão e o homem sem ninho pede a conta, sai a procurar um sítio provisório onde possa recolher-se com o som de ossos quebrados e um ganido lancinante que por essa noite não sairão de seus ouvidos e lhe darão motivo para virar mais um dia da sua vida e acordar amanhã cedo na esperança de viver grandes e fortes emoções que hoje infelizmente não aconteceram por mais que ele corresse atrás.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

SE EU FOSSE VOCÊ

brigava com ela saía pelado tomava cachaça fazia arruaça pisava na bola entrava de sola cortava o barato sentava o cacete batia na cara cagava na moita falava rasgado rasgava o contrato baixava um decreto cobrava pedágio pulava esse muro virava essa mesa soltava os cachorros armava um banzé soprava a fogueira ficava uma fera tacava pimenta criava um rebu tocava punheta tomava no cu amarrava essa égua fumava maconha mijava no tanque metia a colher cantava de galo trancava com chave roía essa corda fazia pirraça pulava do oitavo tomava mais uma ficava na boa pensava direito botava uma pedra tentava esquecer passava por cima tirava de letra matava no peito jogava pro canto deixava pra lá partia pra outra pegava essa estrada sumia no mapa saía correndo ficava mais calmo pintava esse rosto mudava essa cara passava batom usava colírio não dava bandeira fazia checkup pegava no sério tocava um negócio abria um boteco comprava uma casa plantava batata nadava de costa deitava na cama rolava na fama transava uma ioga gozava essa vida matava essa aula ligava essa trompa tirava essa roupa entrava na dança botava mais fé andava no vácuo voltava pra casa mudava o canal não dava conselho virava esse disco calava essa boca fechava a matraca parava com isso
“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez; foi a época da crença, foi a época da descrença; foi a estação da Luz, foi a estação das Trevas; a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós; íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário. (...) Era o ano de Nosso Senhor de 1775”.

Charles Dickens, “Um conto de duas cidades”

SANS PAROLES


Preciso abrir mão das palavras.
Elas pesam demais. Exigem demais de mim.
Desconfio que me traem.

Preciso libertar-me do peso das palavras,
substituí-las por gritos e sussurros
que falem melhor de mim.

As palavras fogem da verdade,
afundam-me no lodo do abismo.
O que procuro nelas?
Decifrar o que a mim não se revela nunca?

Tento explicar o meu querer errante
e as palavras me deixam de mãos vazias,
coração vazio.

Acerto no gesto, erro na palavra.
Mudo é o meu destino.

Te perdi pela palavra? Estou perdido.

Apenas um canto sem palavras nesta hora vaga.
Voz que não se pronuncia: um sopro.

Procuro loucamente um verbo intransitivo,
absoluto,
que depois dele sobrevenha a calma,
e o silêncio.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

PARIS, SETEMBRO

Façonable e Eau de Toilette Kenzo, formato folha, para Celinha, encontráveis a bom preço na Rue de Rivoli. Uma caneta para Fernanda, direto das prateleiras do Auchon. Óculos Vuanet baby para Pedro e André. Jaqueta de couro ou jeans hard rock para Júlia. Chás para Mauro e Marlete. Cravatte bleu para o Sr. Cornélio. Boinas do mercado das pulgas para colegas clássicos. Ana e Mama em aberto, para escolher na emoção da hora. Livros. CDRoms. Nada demais para um viajante pobre, avesso a shoppings e bagagens. Um estimulante roteiro de viagem via compras? Pode não ser.
Aeroporto Charles de Gaulle, amigos na recepção, a margem de Paris igual a qualquer parte do mundo. Talvez eu me sentisse em outro mundo se um táxi tivesse me deixado em plena Champs Elisées e não aqui em Bagnolet, fronteira entre o velho e o novo, um bairro assim como a Cidade Nova, calmo, limpo, tranquilo. Nuvens no céu azul de Paris, igualzinho às nuvens do céu de Belo Horizonte. Aqui estou. Vou dormir, corrigir a ressaca do fuso, ou devo visitar a Tour Eiffel imediatamente?
Clima de quermesse do interior, longa fila de turistas e nativos em diástole dominical, crianças, balões e pipocas. Agitação de yashicas, voyeurs em pânico e o meu primeiro deslumbramento com a paisagem urbana que conheço dos filmes americanos (não sei de filme francês que tenha revelado a vista deste magnífico cartão postal no ângulo merecido; conheci franceses que nunca se elevaram para admirar a cidade do alto da torre, como velhos copacabanenses que também nunca subiram ao pão de açúcar e são capazes de narrar a visitantes cada detalhe do que se vê lá de cima). Emoção de ouvir pela primeira vez a língua gaulesa escandida à compreensão dos estrangeiros, premier étage, deuxième étage, misturada a exclamações de todas as línguas do mundo. Tudo muito familiar. A mídia nos integra. Só os olhos vêm novidades. Enfim, Paris aos meus pés.
Emoção contida. Primeira noite, desagradável sensação de que nada mudou e o mundo continua a girar como sempre. O impacto de mergulhar, logo no primeiro dia, no cotidiano de uma família francesa, suas regras, seus temores, projetos de futuro, asfixia, a previdência, o que será de nós quando o inverno chegar, a compreensão da fábula da cigarra e da formiga, os rigores da economia popular, absolutamente estranhos ao improviso dos trópicos, à informalidade das colônias.

Ier Jour. Simone me guia na manhã do primeiro dia. Desconfio que, com quarenta anos de livro e cinema, conheço mais Paris do que ela, que mora aqui há 8 anos. Tem medo, ainda sente o peso dos primeiros anos de discriminação, uma brasileirinha metida a besta que ousou casar-se com um francês.
Subimos e descemos várias estações do metro. Em Père Lachèse, a primeira parada que me agrada muito, com gosto de pesquisa sociológica: agência de empregos. Quadros com ofertas de trabalho, quase todas na indústria do turismo. Fila de 9 pessoas pacientes. À frente, um cidadão egresso de tratamento mental (iria descobrir, depois, que isso aqui é terra de muitos loucos). O diálogo se desenvolve com uma certa rispidez, mas sem mover um músculo. Ele quer saber da atendente como fica sua situação de trabalho depois que tiver alta do internamento. Ela responde que ele deve voltar à agência quando tiver alta – e aí, sim, vamos ver o que podemos fazer. Ele insiste em conseguir uma posição mais definida desde já. Cada fala dura mais ou menos 5 minutos e cada um escuta calmamente o que o outro tem a dizer, até o ponto final. Mesmo sem concordar com uma palavra do outro. A construção é lógica, cuidadosa, cartesiana. Nenhuma solução à vista, a coisa já dura meia hora, ninguém da fila reclama pela demora, a atendente chama a supervisora e passa o abacaxi para ela, o debate continua, interminável e deve ter atravessado a tarde. Descubro que, por aqui, a palavra tem valor.
À tarde saio sozinho. Je suis à Paris e me transformo logo num rato de metrô, me seduz o crossing das linhas, a rapidez dos deslocamentos, a sisudez dos franceses que não se olham nos olhos, apenas lêem ou fitam o teto, de vez em quando arriscam um olhar pelo reflexo do vidro da janela.
Árabes, africanos, orientais, latinos, mistura de raças altaneiras que por aqui andam de cabeça erguida, vestidas de muitas cores. Subo as escadas do metrô e broto na Île de la Cité. Magnífico conjunto arquitetônico do quatrocento, o Sena redivivo, águas claras, dizem que por aqui até se pesca – e vejo pescadores às margens do rio verde em pleno outono. Descubro que Paris é cinza. Gratifico-me, cumprimento a mim mesmo por estar aqui, por ter tido a coragem de sair do lugar e vagar sozinho por estas terras estranhas, por essas ruas antigas cheias de gente parecida comigo, falando uma língua familiar que Padre Tachard e Mademoiselle Evangeline me ensinaram nos bancos de escola em Mariana e Barbacena.
E ando, caminho até sentir dor nas canelas, respiro fundo o ar de Paris, sento-me à mesa de um bistrô e capricho no pedido: “une bière pression, s'il vous plaît” para garantir o sucesso da minha primeira emissão em língua francesa. Acendo um cigarro. Os museus e o metrô são os único lugares onde não se pode fumar na França. No mais, pita-se desbragadamente. Não entrei num único restaurante ou bar onde não fosse permitido fumar, nem sequer aquelas tradicionais áreas para não-fumantes. Escorrego ao pedir la compte, que a garçonete corrige para l’addition. De qualquer maneira, vitória: consegui tomar os primeiros chopes sem problema.
Na segunda parada etílica, crio coragem e boto as mangas de fora: "je voudrais boire un bon vin rouge. Est-ce-que vous pouvez me conseiller?". E o garçon entende tudo, de primeira. Sou do mundo, esta cidade me pertence.

2ème Jour. Sinto-me em casa, metido a besta. Logo pela manhã, bela visita ao Centro Georges Pompidou, uma exposição de Fernand Leger, montada em ordem cronológica – o que deixa visível o quanto ele foi piorando com a idade. Suas primeiras criações são infinitamente melhores do que as dos últimos anos. Em meio aos murais maravilhosos, pintados em grandes formatos, fixo-me em uma verdadeira obra-prima: bela e jovem visitante italiana - sei pelo guia eletrônico - portadora daquela beleza clássica que combina com os museus e os ambientes de arte. Decido fazer o trajeto da exposição ao seu lado, quase ombro a ombro, ela não se importa, talvez nem me veja, às vezes me esbarra ao passar de um quadro a outro, não trocamos uma palavra mas tive a sensação de que tínhamos combinado aquele encontro, passamos uma manhã inteira em mútua e silenciosa companhia.
Mais que o arsenal da arte moderna, impressiona a arquitetura do Pompidou, suas armações metálicas, escadas e imensos canos de ar e água à vista do visitante, isto sim, uma coisa verdadeiramente moderna e provocante no contexto de uma ambientação medieval no entorno urbano. Difícil destacar alguma coisa da exposição permanente, que é variadíssima, mas registro aqui – por afinidade antiga – os móbiles de Calder. E os homens diante da TV, uns 15 sisudos bonecos de terno preto, assistindo a um vídeo experimental, sentados em solenes cadeiras com altos espaldares, apenas uma cadeira vazia, na qual, gaia e incontrolavelmente, me sentei, compondo com os homens-bonecos um quadro tristíssimo que só a Simone e um outro visitante divertido com a cena puderam avaliar.
E o Louvre? Deixo para outro dia.
Na manhã seguinte, uma caminhada aleatória me conduz ao Panthéon. Mágica pura: o monumento que mais me impressionou com a sua cúpula magnífica e o seu interior soleníssimo. Fiquei literalmente encantado, abobado, ainda mais que naqueles dias oscilava pelo espaço o pêndulo de Foucault, fixado no alto da abóbada interior, descrevendo uma eterna parábola que atravessava todo o centro zenitalmente iluminado do Panthéon. Fiquei ali, horas, e quando saí foi para tomar umas cervejas num bistrô belga bem perto e ficar apreciando suas formas externas. Nunca a palavra monumental foi tão precisa.
Depois das cervejas de marcas variadíssimas, claras, escuras, amargas (se não me engano o nome da casa é Gueuze) a descoberta dos boulevards mais famosos, o Saint-Germain, o Saint-Michel, o Montparnasse, com suas edificações de 4 andares debruçados sobre pequenas praças bucólicas de interior, vontade de morar num deles, mesmo entendendo que devem ser caríssimos, os telhados de pedra reluzente, as janelas com venezianas basculadas, o azul desmaiado e o tom de terra das pinturas. Calma e paz.
A seguir, emoções indescritíveis: ir entrando pelas grandes portas da Sorbonne adentro sem ser convidado, atravessando seus corredores como um intruso prestes a ser surpreendido em flagrante delito, entrando em suas salas de aula, recolhendo folhetos com informações sobre cursos, apreciando o movimento frenético dos estudantes na temporada de inscrições e descambando, finalmente, no grande pátio onde predominam as estátuas de Victor Hugo e Louis de Pasteur. Pausa para respirar, sentado numa balaustrada do pátio, respirando fundo o ar da intelectualidade mundial, embebendo-me no ambiente famoso dos escritores e artistas que povoaram minhas imaginações de leitor. Coisa de macaca de auditório, fã terceiromundista deslumbrado, mas como foi linda aquela manhã!
Daí, um calmo desfile pelo bairro universitário, a academia de medicina, as livrarias, o rosto dos estudantes preocupados com os rumos que a vida vai tomando à nossa revelia, como nós éramos no nosso período universitário em Belo Horizonte, igualzinho. Nova parada gastroetílica, que ninguém é de ferro, desta vez diante do hotel Claude Bernard e do bistrô Máscaras, pertinho da universidade René Descartes, um bar na esquina da rua Jean de Beaulais, para experimentar, un apéritif kir – nada recomendável – une omelette complete avec salade verte (já tinha vivido tantas emoções que não suportaria um desgaste com a comunicação da língua) e só então pude tomar ar nos pulmões, recuperar-me da imensa aventura que é descobrir uma terra estranha por sua própria conta e risco, sem mapa e sem guia. Confortado, segui em lenta caminhada pelo bairro universitário – e fugi às léguas de um botequim brasileiro, na rua Bertholet, com bandeira verde-amarela e tudo.
Dia seguinte, sempre a pergunta perturbadora: e o Louvre? Vou adiando, não morro de amores pela maior atração de Paris. Antes, o Musée d'Orsay. Ainda não passamos pelo Louvre mas já posso adiantar que a visita ao museu d'Orsay é melhor programa, em todos os sentidos.
Sem o burburinho do Louvre, você acessa uma vastíssima e maravilhosa coleção de arte exposta com um critério enciclopédico que abarca a criação do mundo em todos os tempos: esculturas magníficas, pinturas de todos os séculos e, acima de todas as maravilhas, no terceiro pavimento, uma farta reunião dos impressionistas, de cair o queixo e deixar-se enlevar: quase tudo de Monet, para mim o maior de todos, Degas, Van Gogh, Manet, Toulouse-Lautrec (deste, chama a atenção uma série de desenhos e aquarelas de rara beleza, desconhecidas para mim, expostas à meia luz em uma sala especial) e Renoir, que me seduziu (melhor dizer "impressionou") profundamente.
A surpresa de deparar com um grande Picasso numa virada de parede. Estão todos lá no d'Orsay. Todos os grandes mestres da pintura e da escultura de todos os tempos. Meu primeiro encontro direto com Camille e Rodin. Um dia ainda quero reencontrar e identificar o autor de umas esculturazinhas do tamanho de um polegar, em feitio caricatural, retratando personagens da cena política francesa dos séculos XVffl e XIX, de uma perfeição assombrosa e humor veramente picante. Ficam no primeiro piso, num salão elevado logo à esquerda de quem entra, protegidas por vitrines de vidro. À saída do d'0rsay, o prazer de explicar a um turista quarentão, em francês, onde encontrar uma boa refeição, em local agradável – para, só depois do esforço, descobrir que se tratava de um brasileiro.
Bom, aí sim, depois destas primeiras incursões a nível superior, eu já estava em condições de me permitir uma vidinha mais normal, isto é, ir ao supermercado Auchon e comprar umas iguarias, devidamente auxiliado por minha hospedeira. E vieram os jantares domésticos. Pernas de carneiro ao forno, mouton aux fines herbes, com miolo bem vermelho, mariscos ao vinho, tudo muito palatável – e a descoberta intragável de que, aqui, cada um paga o estritamente seu e as contas são rigorosamente acertadas. No arranjo da geladeira, cada hóspede é dono do que comprou e que ninguém lance mão da mercadoria do outro – nenhum senso comunista, um horror individualista, ao ponto de me ter sido negado pelo dono da casa um café após a refeição, pelo ridículo motivo de eu não ter comprado o "meu" café! Eu, ein Rosa? Lá em casa cafezinho sempre foi honra da casa.

4ème jour. Enfim, as tulherias, place de la Concorde, les champs elisées, l’arc de triomphe. Tudo a pé, com um sapato novo perturbando a beleza do lugar. A sofisticação dos cafés, a Paris financeira, o brilho de pedra falsa – bela pedra falsa. Calçadões maravilhosos, espaçosos (quando não invadidos pelas mesas dos bistrôs). Comecei a ficar enjoado daquilo tudo, daquela vidinha de turista andarilho, vontade de ficar em casa vendo televisão ou mudar o rumo. Aí, um casal de hóspedes brasileiros da Simone, recém-chegado de um giro de carro pelo interior da França, sugeriu um passeio a Giverny, terra onde viveu Monet, onde estão seus famosos jardins e seu museu, no comecinho da Normandie, a pouco mais de l hora de Paris. Beleza, partimos amanhã.
Nada como um pouco de confusão metropolitana para equilibrar a pressão do turista. Saída de Paris para Givemy, trânsito intenso nas grandes rodovias, velocidade vagarosa mas fluxo constante, um pesado rebanho de automóveis e caminhões movendo-se em direção à linha do horizonte. Até aliviar numa via secundária, mais calma, rumo à Normandia. Como se estivéssemos rodando pelas estradas do sul de Minas numa fresca manhã de quinta-feira. Giverny uma linda vila florida, lembra os condomínios residenciais plantados às margens de nossas grandes cidades, apenas turistas nas ruas e uma ou outra mercearia com bons vinhos e queijos. Casas bucólicas, campestres, a maioria sem movimento de habitantes, parece que usadas apenas em fins-de-semana. Calçamento de pedras, a inefável igrejinha – e o Museu de Monet, a casa onde viveu, seus jardins conservados, onde não se pode fumar nem fazer piqueniques. Como já fossem 2 da tarde, a fome nos assaltasse e nos tentasse um convidativo banco de madeira à beira do lago, ameaçamos desembrulhar uma matula que Simone havia preparado e fomos alertados por uma zeladora: aqui não!
Chinoiseries na casa de Monet, muitos objetos e desenhos chineses, tema que o fascinou numa fase da vida. E reproduções de seus quadros, paisagens esmaecidas no fog impressionista, imensas nuvens espatuladas, muitas flores e jardins, marinhas e barcos em composições pontilhadas. Como sempre, à saída de todos os museus franceses, uma grande loja de souvenirs, verdadeiro shopping de recuerdos variadíssimos, posters com reprodução de pinturas, miniaturas de esculturas, livros em capa dura, calendários, balangandãs, camisetas, roupas e quetais, onde comprei um lindo broche que Dona Teresinha usa até hoje nas festas de gala. Na mesma rua, a casa dos pintores impressionistas americanos, que fizeram com Monet uma ponte cultural do novo ao velho mundo.
E para completar (vocês se cansarão de ouvir falar nisso) o prazer de comprar de uma simpática senhora francesa, em uma mercearia tosca, que dá porta para a rua, um magnífico bordeaux compartilhado por nós no bico da garrafa - com pães, queijos e patês que eu vou contar pra vocês.

Quelque jour. De volta a Paris, le Palais de Justice, Saint-Chapelle, Notre Dame e seus vitrais espetaculares (conforme a estação, escolha a hora de melhor incidência luminosa). Na Conciergerie, as prisões da revolução francesa em simplória representação de grandes bonecos de cera encarcerados em suas celas, textos dramáticos sobre os horrores da revolução, guilhotinas e justiçamentos sumários – uma aventura bem ao gosto dos franceses, histórias que eles gostam de contar como vovó adorava contar casos de assombração no borralho do fogão da fazenda. Sempre intercalando andanças à beira do Sena e dos bares.
E – voilá! – le Louvre. A cerimónia de preparação da visita durou mais do que a própria visita. Delírio de japoneses clicando suas máquinas a torto e à direita, burburinho de ginasianos em frenesi, grupos de turistas com guias esgoelando em todas as línguas. A cristaleira de Miterrand barrando a visão de entorno da bela praça de entrada. No interior do hall, a pirâmide já funciona melhor, criando um ambiente de mágica transparência. Muito ruído e confusão, condicionando um ritmo frenético: corri à Victoire de Samothrace – imensa no alto da escadaria – derivei para os salões onde reina La Gioconda, protegida por vidros à prova de vandalismo e perdigotos, cercada de admiradores que costumam ali passar a tarde inteira, boquiabertos. Um olhar rápido sobre múmias egípcias e cerâmicas etruscas, o deslumbramento com a opulência dos salões de pintura - e saí correndo para o primeiro bistrô nas proximidades, prometendo voltar com mais calma. Hora de partir para a Itália.

Paris-Roma. O medo de errar no embarque na estação de Lyon – para onde fui de metrô –desfaz-se rapidamente na profusão de informações visuais e anúncios de alto-falante. Expectativa imensa de conhecer os famosos trens europeus. Cuidado para não perder o passaporte e não deixar-se assaltar! Minha amiga tinha conseguido me deixar em pânico de tanto me prevenir contra estes dois eventos. Perder o passaporte seria uma confusão dos diabos e os italianos são mãos-leves, costumam limpar os turistas sem que eles percebam um gesto. Não vi um italiano ladrão e nem corri o risco de perder o passaporte, talvez porque o conferisse no bolso do paletó umas 20 vezes por dia. Já tinha feito la resérvation de place, dois dias antes – providência indispensável para quem viaja com o Europass. Chegar na hora e embarcar sem reserva, como prometem as agências de viagem, é ficar na mão de calango, dependendo de assento nas cabines. Na itália, corresponde à prennotazione posti, a reserva antecipada de lugar nos trens.
Embarco às 8 da noite num TGV ligeiríssimo, trem 219, voiture 110, place 105, numa cabine de 6 poltronas (3 frente a 3) e – surpresa! – só eu na cabine, pelo menos até que o dia amanhecesse, já em território italiano, e os trabalhadores da Toscana invadissem o trem rumo às fábricas e escritórios nas cidades vizinhas, sempre trajetos curtos, de 30/40 minutos, como um trem de subúrbio. Cabine muito confortável, leitura nervosa enquanto o trem não parte, o tempo de descobrir os comutadores de luz e ar – e o comissário me pede o bilhete de reserva e o passaporte, sumiu com meu passaporte pelos corredores, deixando-me preocupado com os alertas da Simone. Tudo pronto, vamos lá. A velocidade me espanta, o último trem que peguei era uma maria-fumaça da linha Oeste de Minas, que não passava dos 40 quilómetros. Aqui, começamos a 140 km/hora e devemos ter chegado aos 200 km no meio da madrugada, imagino que atravessando os túneis dos alpes. As vezes, não resistia e abria as janelas do corredor e era sempre advertido pelo comissário assustado, que não compreendia para que um passageiro podia querer tomar na cara o ar frio dos Alpes, em plena madrugada. Confiante no carro-restaurante (carrozza-ristorante na Itália), fui sem matula e sem água. Sinais de civilização superior: os cozinheiros e garçons estavam em greve, restaurante fechado, não dava para descer nas paradas em Dijon, Torino e outras, quase morri de fome até Roma, estômago roncando por um queijo e um bom vinho, implorei por um chá, um biscoito – nada!

Roma, sexta-feira. Descemos na estação Ostiense - e não em Roma Termini, mais central, às 11:30 da manhã (15 horas de viagem sem pasto). Corri para a lanchonete da pobre estação, comi um sanduíche rápido, armei-me de cartões telefónicos e bilhetes de metrô, vaguei pela estação deserta em busca de um câmbio e perdi-me nos labirintos para encontrar a plataforma do metrô. Decepção. Em comparação com o de Paris, o metrô de Roma é sujo, mal conservado e mal arejado, apenas duas linhas cruzadas, calor dos diabos sem ventilação, acabei descendo na Piazza d'Spagna suando corno tampa de chaleira. Era só o começo da confusão e do suadouro. Tinha indicação do Hotel San Silvestre perto da praça d'Spagna, vicino a Fontana di Trevi, que atravessei quase sem olhar, fixado num banho restaurador, depois voltaria para apreciar com calma o movimento da praça. Tinha decorado uma frase de guia: "ci sono stanze? A resposta invariável: não há vagas, "sono completi". Era a tarde de uma movimentadíssima sexta-feira, acontecia ali um encontro internacional das indústrias, o trânsito de Roma piradíssimo, carros e pedestres disputando espaço a unha nas vielas estreitas - e eu vagando hotel após hotel, sempre com a mesma resposta "sono completi" e alguma boa vontade de me indicar uma alternativa próxima. Duas horas de procura, vã e exaustiva. Todos lotados.
Entrei em desespero, suava em bicas com a mochila nas costas, parei um táxi na praça, depois de rodopiar feito pião nas redondezas e, num italiano manco, comandei um nome que me veio de estalo na memória: toca para Campo dei Fiori! Não sabia onde era, perto de onde, se no centro ou na periferia de Roma, mas foi a saída que encontrei. Era logo ali perto, não fossem as voltas intermináveis impostas pelo tráfego insano. O táxi me deixou numa ruela perto de um hotel de aparência externa deplorável, rebocos soltando, entrei confiante e ouvi a mesma resposta: lotado. Pensei comigo, vou ter que dormir na estação de trem, pavor de lembrar a cara zangada de um “carabinieri” cutucando o cacetete num senhor que cochilava num banco da estação de Roma: aqui não se pode dormir. Garganta apertada, entrei em mais dois albergues e, no terceiro, Albergo Sole, finalmente! Temos o último quarto vago! Quase chorei de alegria e alívio, mesmo ouvindo pela primeira vez o som da lira italiana: "cento cinquanta mille lira"- custei a me refazer do susto. Achei que estava sendo assaltado pelos mãos-leves italianos. Fiz as contas e vi que, na verdade, aquilo equivalia a 80 dólares. Um bom quarto, com um pequeno mas confortável banheiro, um banho inesquecível, um breve repouso e a lição para sempre aprendida: não vá a Roma sem reservar hotel. Em nenhuma outra cidade tive problema para encontrar acomodação, mas em Roma, atenção!
Depois dessa aventura (fome no trem e andanças em busca de pouso) era o que faltava: uma gripe com tosse brava, fruto dos frios ares alpinos nos pulmões desprevenidos. Antes de procurar o vinho italiano, fui obrigado a sair em busca de uma farmácia – coisa rara de encontrar na Europa, ao contrário do Brasil, que tem uma em cada esquina – e teci um longo e confuso discurso ao balconista, antes de descobrir que a palavra que eu procurava era “schiaroppo”, isso mesmo, um xarope pra tosse!
Acalmado, caí na noite romana. Dois quarteirões e estava na alegre e animada Piazza Famese, rodeada de restaurantes com mesas na calçada e ornada de um belíssimo palco dos hare krishna. Lembrei-me do Gino Calvi: i muglieri italiani! As mulheres romanas – e digo romanas porque não vi iguais em Florença e Veneza, por onde andei – parecem saídas de capas de revista, belas morenas, altaneiras, de porte esguio, olhos profundos – e parece exagero classificar assim generalizadamente, mas foi o que vi muito e sempre, em todos os lugares, encantado. Roupas de feitio clássico, tailleurs, blasers, calças compridas com vinco, negando ao voyeur a beleza adivinhada das pernas – só turistas usam minissaias por aqui.
Porém, o que encanta os olhos não conforta o ventre - e vamos ao repasto gastronômico, que ainda me ressinto do jejum da fatídica viagem de ontem. Nada de invenções criativas. Primeira noite na Itália, que venha a pizza romana e, como sempre, um bom vino rosso com acqua minerale. A pizza de massa finíssima, deliciosa, enorme, que os romanos costumam enrolar no prato – os italianos ou eu? – como panqueca recheada de queijos, tomate, manjerona e, de acordo com o pedido, salaminhos muito palatáveis. Aos poucos, fui descobrindo que uma boa refeição italiana se compõe de muitos pratos: primo piatto – pequena porção de massa leve, caneloni ou torteloni ou tagliarini; o secondo piatto – uma carne fatiada ao molho ou ao forno, um peixe ou marisco; dopo uma salada verde e sobremesa. Sequência para deixar bobo e feliz o praticante disposto a matar o tempo e fazer o quilo olhando a vida passar.
Tantos amigos de amigos a procurar, trouxe uma lista de referências em Paris, em Roma, em Veneza, meio parentes, meio amigos - não ligo pra ninguém. Aliviado por decidir dessa maneira, sigo minha via solitária, descobrindo o que se me apresenta, por minha conta risco. A diferença é que cada descoberta sem aviso prévio é uma verdadeira descoberta, um susto bom. Viajar sem guia oficial - eis o trato. Os krishna cantam e desfilam pela praça Farnese, ricamente paramentados, seguidos de alegres turistas neófitos atraídos como ratos de hammelin, batucando mantras que nos perseguirão noite adentro, até o sono na cama do hotel, um sono pesado, entrecortado de tosses violentas, digno de um dia de surpresas, ressacas e grandes descobrimentos.

Sábado em Roma. Depois de um café na padaria da esquina, saio andando sem saber onde estou. Quebro uma esquina, outra, pego uma avenida e vou no cheiro. Sabe onde chego sem querer? No Vaticano, praça São Pedro. Fazer o quê? Museu do Vaticano, outro encanto. É preciso insistir em que hoje é sábado, turistas às pencas, na maioria italianos mesmo. Primeiro, um giro superficial pela catedral de São Pedro, com grandes áreas em restauração, onde encontro, sentado num banco olhando afrescos, o meu tio Hélio Grossi, falecido há 18 anos, que não me reconhece, apesar de constrangido ao se ver mirado por mim com tanta insistência e assombro. E tomo o rumo do Museu. Caminhamos pelos suntuosos salões do Vaticano ombro a ombro, lotação esgotada, flashes e arroubos de admiração, alegria incontida, bandos de maritacas, alaridos e assombros. Durante o longo trajeto do museu, sempre a placa com a terra prometida: Capela Sistina, onde todos querem chegar afinal, mas que não chega nunca. Estratégia do roteirista ou suma teológica? Se querem chegar ao paraíso, primeiro têm que passar pela penitência purgatória: andar quilômetros de labirintos e salões apreciando obras menos famosas mas igualmente importantes. Tem gente que tenta driblar o roteiro – como eu tentei – atalhar por becos e frestas, mas nos deparamos sempre com uma passagem barrada, e voltamos à estrada original. Juro, vi turistas perguntando em todas as línguas: "a capela sistina, vai chegar ou não vai?", ouvi pessoas reclamando da armadilha, protestando contra a procissão redentora, promessa cansativamente adiada e não cumprida. Quando, finalmente, adentramos a capela sistina, era um espetáculo triste: turistas esgotados, boquiabertos, numa sala em que não cabia nem mais uma mosca, pescoços tensamente erguidos, olhos fixos no juízo final de Michellangelo, forçando espaços com braços e ombros, num pré-orgasmo a que se seguiria, necessariamente, uma inevitável brochada pelo cansaço e pela demora em encontrar o prazer. Depois do clímax, saio correndo, buscando ar, desço e subo escadas em ritmo nervoso, pergunto pela saída (dove è la uscita?) e me vejo de repente na praça São Pedro, como bicho liberto da insuportável prisão dos museus.
E só então reparo que a fachada da Igreja de São Pedro está sendo restaurada. E que, na praça, reina um clima de jubileu, barraquinhas de água de coco, pirulitos e doces, imagens e santinhos – não muito diferente das festanças profanas de Congonhas e Mercês do Pomba. Aí não resisto, 11 horas e meia no outono de Roma, ligo para meu pai, direto de um telefone público. São 7 horas e meia na primavera de Barbacena, Nelito já caiu na rua, certamente depois de comprar pão e coar o café da manhã. Não consigo falar da minha emoção, que tento transmitir para minha irmã notívaga que atende incomodada e tresnoitada.
E agora, a tarde e a noite de sábado para conhecer Roma. Saio do Vaticano tomado novamente pelo espírito andarilho, vago olhando prédios e praças, de repente estou em plena Piazza Navuona, com a estátua de Victorio Emanuelle, uma belíssima praça retangular, monumental – esta palavra inevitável no turismo europeu, tudo aqui é monumental. Os conjuntos arquitetônicos históricos a que estamos acostumados no Brasil – pelourinho, centro do Rio de Janeiro, Olinda, São Luís, Ouro Preto, Tiradentes – são literalmente miniaturas das edificações das grandes capitais europeias. É só maginar a escala ouropretana duplicada ou triplicada em todos as suas dimensões: altura, largura, profundidade, espessura das paredes, número de portas e janelas. Ressalvadas as condições de estilo e época, podemos deduzir, forçando a mão, que uma seria a maquete da outra, ou, em outros termos: da riqueza que aqui se produziu restou apenas o suficiente para construir presépios que tentaram reproduzir, em escala menor, a magnificência do barroco e do renascentismo europeus.
Em Roma, exagerei no aleatório. Talvez pelo atropelo da chegada e a cansativa caça de alberques, não comprei guias nem tentei informar-me sobre datas, marcos e eventos, vinguei-me gazeteando as aulas de história e as imposições do roteiro turístico, nem o Coloseo me dispus a visitar. Andei, andei e fui descobrindo vistas poderosas das quais nem sei o nome, nem quis saber. Visitei escavações de catacumbas perto da praça Navuona, subi as escadarias de um palácio magnífico onde noivos paramentados comemoravam núpcias, vislumbrei cenas felinianas da cidade eterna, as indefectíveis lambretas e a juventude urbana ainda cheirando a James Dean, passei no hotel para um banho e voltei à Praça Farnese no começo da noite (escurecendo às 8 e meia) para uma refeição completa – com tutti piati a que eu tinha direito depois da primeira jornada. Três horas depois, saí meio briaco de tanto vinho e agachei-me em frente ao palco dos hare krishna, ao lado de um turco bêbado (por afinidade?) que desafiava a retórica do mestre careca que tinha cara e fala malandras de gigolô carioca. Falava o mestre, enquanto chupava restos de comida entre os dentes, sobre a espiritualidade e o encontro com a essência de nós mesmos, quando o meu amigo bêbado o interrompeu com altos berros e gestos, mais ou menos com estas palavras: "mas que espírito que nada, olha a minha perna (guarda mia gamba!) ferida, olha a minha pobreza, olha a minha matéria fedida!".
Solidarizei-me de imediato com o protestante, bati palmas e chamei atenção para ele: "ascolta!". O mestre ficou enrolado, meio puto, só sabia dizer: "la domanda, qual e la domanda!" – e o tumulto só foi sossegar quando uma doce discípula de sandálias e batas coloridas se assentou no chão, com sua filhinha, ao lado do bêbado, começou a conversar em voz baixa com ele e o acalmou num longo e paciente diálogo. O domingo da manhã seguinte foi de novas andanças sem rumo, até as 11 horas, quando peguei o trem para Firenze. Um dia ainda quero conhecer Roma.

Florença, tarde de domingo. Agradabilíssima viagem rumo à Itália meridional, desta vez à luz do dia e em companhia de pessoas calmas na cabine, a não ser pelo incidente antes do trem partir, quando uma baixinha americana, não conseguindo alcançar o bagageiro, subiu de sapato na poltrona e levou um esporro de uma ruiva alemã: "é assim que você faz na sua casa?" Pude ver, ao longo da estrada de ferro quase sempre acompanhando o leito das rodovias, as pedreiras de mármore, vastos campos verdes plantados, castelos e vinhedos, pequenas vilas italianas que me lembravam o interior do Brasil, sempre para os lados do sul.
Às 4 da tarde chegamos à estação de Florença. Vacinado, acalmei-me antes de sair espavorido em busca de hotel, peguei informações e recebi de um italiano – Paolo – o folder de um pouso ali perto, saindo da estação à esquerda, seguindo a via Nazionale, por 100 dólares. No 5° quarteirão à direita, quando viro a esquina da rua do hotel (XXVII Aprile) poucas casas antes de chegar ao destino recomendado por Paolo, resolvo checar a placa "Picadilly Hotel", primo piano de um velho casarão fiorentino, n° 18. Sou atendido por um italiano e duas senhoras sorridentes, com um jeito muito familiar, uma delas acariciando um poodle no colo. Pedem 50 dólares (oitenta e cinco mil liras) por um quarto com banho e me levam a conhecê-lo. Maravilha! Belo pouso, quarto amplo com cama de casal, TV e grandes janelas de vidro e veneziana que davam para um deleitável pomar de romãs, sala de banhos espaçosa, decido: agora sim, começam minhas férias na Itália, depois da correria e do susto de Roma. Fico por aqui uma semana.
E, fim de tarde, caio na rua. Quatro quarteirões e estou na Duomo, babando diante da catedral estupenda (desconfio que vão faltar adjetivos neste narrativa). Escolho a mesa de um restaurante de esquina em posição estratégica, de onde se pode admirar demoradamente a arquitetura e os motivos decorativos rebuscados da catedral – só para descobrir que aquele lugar privilegiadíssimo é também caríssimo, trono de ouro para turistas desavisados e deslumbrados como eu. Não faz mal. Primeiro dia em Florença, extrapolo a verba do dia, gasto mais do que posso. Também já tinha ganho 50 dólares na diferença do hotel. Dali sigo para a margem do Arno, que beleza estes grandes rios que atravessam essas cidades... o Sena em Paris, o Tibre em Roma, o Arno em Firenze e Piza, o Tamisa em Londres que ainda não vi e não verei nesta viagem. Vou até ponte vecchio, bato perna com a delícia de quem encontrou seu porto seguro, estou tranquilo e feliz. Vou dormir, não sem antes comer uma deliciosa bisteca com um tonel de birra no balcão de um pub, a caminho do hotel. E aí ligo a TV, aprecio o noticiário, me delicio com os âncoras, os inúmeros talkshows, a brabeza dos depoimentos populares, muita mesa redonda com análise de psicólogas – e as hebes que assolam a TV italiana.
O mundo mudou. Acordo tarde, refeito, em pleno gozo de férias. Capricho na escolha da roupa, sapatilhas confortáveis, calças largas cheias de bolsos, camisa salmão de malha bradley mangas compridas, temperatura agradável de 20 graus. Cafelati na mercearia da esquina, com brioches. Se pedir apenas café, vem uma meia xicarazinha de cafezinho, um dedo de achocolatado tipo capuccino, uma bosta.
Passo pela igreja de San Lorenzzo, onde se anuncia um concerto de flautas para quarta-feira, entrada franca, agenda obrigatória. E caio num largo onde acontece uma exposição de Marc Chagal, a 1'annunziata, nome do centro cultural num prédio de construção horizontal, mergulho num porão muito bem decorado toscamente – e com apenas outros seis visitantes, passo a manhã luminosa em companhia de Chagall, que eu pouco conhecia, maravilhoso.
Novos giros pela ponte vecchio e seus antiquários, joalheiros de fama mundial, cruzo para o outro lado do Arno, a rive gauche, passando por Santa Croce e suas pinturas em terracota, pelo palazzo Pitti e vou enveredando por ruelas fora do circuito turístico, até desembocar, já no final da tarde, numa pracinha simpática, num botequim decente frequentado pelo povo do lugar, chamado "la dolce vita", zona boêmia livre de turistas, belas moças nativas, exposição de pinturas geniais do para mim desconhecido argentino Schirapa, um reconfortante conhaque Martell apaziguado por chopes geladíssimos, gente boa a atenciosa, primeiras conversas em italiano, uma língua mais difícil do que eu imaginava, acabava recorrendo, muitas vezes, ao inglês e ao francês para expressar o que queria, numa mistura que, afinal, funcionou durante toda a viagem. Em termos. Tem hora que dá uma vontade danada de entrar numa roda que ri, entender tudo o que se diz e rir junto. O meu conhecimento destes idiomas dá para o fisiológico, para resolver as necessidades básicas. A língua nos separa. Na maioria das vezes, il faut rester a l’elementaire. E, consolo dos viajantes aflitos, ao menos sobra tempo para observar e olhar a vida estrangeira, seus costumes e manias, acontecendo à nossa frente.
Saí de lá bêbado, tarde da noite, assustado com a escuridão das ruas, tentando acertar o caminho de volta que finalmente acabou se revelando depois de muitas voltas e atalhos por caminhos lúgubres, quintais e terrenos baldios, uma aventura absolutamente irresponsável em terra estranha se não fosse protegida pelo deus dos ébrios. Trôpego e cansado, no quarto do hotel, dormi impressionado com uma reportagem da RAI sobre o efeito das linhas de alta tensão sobre o aumento da leucemia em crianças. E divertido com o comercial de um papel higiénico que tinha como slogan "la morbidezza aveludada" – só no dia seguinte iria saber, consultando o Michaelis, que morbidezza queria dizer "maciez". Vá entender o italiano! Minhas poucas lições de latim não foram suficientes para atravessar o rubicão. Café da manhã é colazione, acordar é svegliare, macedonia é salada de fruta, saída é uscita! Pode? Té manhã.

2° dia em Firenze. Hora de ficar esperto e parar de gastar os tubos nos restaurantes. Descubro, então – ecco! – as mercearias e suas tentações. Queijos e salaminhos variados, vinhos, pães, sucos, começo a abastecer meu quarto de hotel destas maravilhas a preços baratíssimos – menos da metade do que se cobra nos restaurantes – sem falar no prazer e no conforto de chegar em casa de madrugada, armar a mesa da ceia e repassar as emoções do dia degustando um excelente chianti da toscana com um bom camembert e pães de centeio crocante. O primeiro destes repastos que se repetiriam todas as noites em Firenze foi regado também a más notícias na TV: um horrendo terremoto em Assisi, com vítimas humanas e perdas irreparáveis do património histórico e artístico desta cidade localizada no centro geográfico da Itália. A emoção dos depoimentos populares o choro sincero de cidadãos em todas as regiões da Itália – e a nítida impressão de que se lamentava mais o prejuízo cultural do que propriamente as perdas humanas.
Com a cesta básica garantida em casa, ganho tempo para vagar livre e despreocupado, penso até em conferir um jogo da Fiorentina mas desisto no meio do caminho, cooptado por um botequim onde entrei em busca de um conhaque para esquentar os peitos e acabar de curar a gripe renitente. No balcão, resolvi testar o bar-man: "Jack Daniels, please". O cara, tipo belga com um topete moicano pintado de azul, entusiasmou-se em inglês, confundindo o milho de Tenessee com o bourbon irlandês: "Hooo! Its a good irish whisky!" e foi logo botando dois copos sobre o balcão, um pra mim outro pra ele, ofereceu-me uma mesa – e por ali ficamos até anoitecer o sábado, quando não resisti e disparei uma ligação do telefone público ali ao lado da mesa para meu irmão Sandro em Barbacena, logicamente "a debito di destinatario", fazendo rir o belga e os vizinhos de mesa pelo palavrório embrulhado por uns 8 Jack, misturando italiano e francês e português e mais algumas línguas até então inexistentes. Depois dessa, ainda tentei encontrar o David de Michelangelo na noite de Firenze, mas ele perdeu-se nas brumas desse porre monumental e acabei, não sei como, parando na 21 Aprile, onde me aguardava um banho quente, uma cama macia e o pomar de romãs.

Pisa. Desta vez não cuido da reserva, tenho noção da escala de horários e vou direto à estação, tomo o trem para Pisa e me sento numa poltrona vaga, sem passar pelo guichê. Como se trata de um trajeto de pouco mais de l hora, nenhum problema, apresento apenas o passe ao comissário e estamos entendidos. Eis-me em Pisa, dominado pela imagem da torre inclinada. Dou-me conta de como os ícones turísticos são capazes de diminuir a importância de uma cidade. Saio da estação, sigo em linha reta até o Arno, atravesso a ponte, bato à porta da Pensione Helvetia, à Rua DonGaetano, 31 e, surpresa! é hora do almoço, a pensão está fechada. A um quarteirão abaixo, deparo-me com o Hotel Victoria, onde me hospedo. Esplêndida edificação do setecento, imagino. Medida de economia: escolho um amplo quarto apenas com pia e bidê, por 75 mil liras, com direito a ver o Arno por uma nesga da janela do 3° andar. Banho na doccia publica, chuveiro coletivo no corredor, decentíssimo, água quente, espelhos, cabides.
E saio atrás da torre inclinada, que acabo descobrindo ao acaso, andando à toa, no rastro dos turistas. Na verdade, o local é admirável, menos pela torre, mais pelo conjunto que domina o largo cenário da praça. A catedral, o Camposanto Monumentale, antigo cemitério destruído por bombardeios na 2a guerra, em plena faina de restauração, muita gente trabalhando na recuperação de afrescos, muitos cacos de esculturas espalhadas pelo piso, em áreas devidamente isoladas por cordões e avisos. Ao lado, o Museo di Sinopie expõe grandes painéis com estudos e rabiscos projetazioni, disegni preparatori) dos murais e afrescos que estão sendo recuperados no camposanto, todos de dimensões gigantescas. Na mesma praça, um museu de arte com peças magníficas, a maioria de tiragem sacra, de onde pude ter uma visão inédita da torre de Pisa surgindo a menos de 20 metros sob os arcos românicos do corredor externo do museu, devidamente registrada em minhas retinas, já que nesta viagem renunciei decididamente ao esporte do turismo fotográfico, farto, ridículo e irritante.
À noite, indicaram-me a Spagheteria dei Borgo, na via Casa Dipinto, dica que passo à frente com muito gosto. Abri a sessão com uma insalata di mare, inigualável, conchas de mariscos semi-abertas ao vapor de vinho branco e ervas de bom cheiro, em grande quantidade, regadas ao vinho da casa. Guloso, pedi depois o spagheti al Borgo sem consultar o garçon e paguei o preço da petulância: era espaguete, sim, porém com o mesmo molho de mariscos que eu já havia devorado na entrada – e com muita pimenta do reino. Desconfio que foi essa comilança de frutos do mar que fez aparecer na minha vida uma coisa desgraçável, que já vinha crescendo por dentro sem ter dado notícia até aquela hora: a gota, por cristalização do urato nas articulações. Dias depois, de volta a Paris, uma dor chatíssima no pé foi atribuída erradamente ao sapato novo. Só no Brasil é que a coisa brotaria pra valer, interrompendo a glutonaria irresponsável a que me dediquei com muito prazer pela vida toda. Adeus ostras e mariscos, adeus feijoadas e leitõezinhos assados, adeus picanhas, lombinhos e torresmos, adeus bacalhoadas e vinhos tintos tão amáveis e restauradores. Hoje, para dedicar-me a esses prazeres perigosos, sou obrigado a fazer um tratamento preparatório, uma semana antes da festa. Colchicina, Alopurinol, Tristezas.

Luca. À la recherche. Na manhã seguinte, pego um ônibus suburbano na praça da estação e dou uma esticada até Luca, terra de meus bisavós que, não sei porque, saíram daqui no começo do século e enfiaram-se no miolo da zona da mata, região de Mercês e Cipotânea, talvez atraídos pela promessa de desenvolvimento do pólo em torno de Juiz de Fora, a Manchester Mineira. Ou talvez porque queriam esconder-se mesmo na mata, bem longe da tormenta da unificação italiana, ou da guerra da Abissínia.
O gosto de uma viagem rodoviária pelo interior, belas estradas estreitas, paisagem montanhosa verdejante salpicada de pequenos castelos, vilas muito simpáticas, paradas catajecas como em qualquer cidadezinha do interiorzão do Brasil. E Luca, uma encantadora vila que, se eu soubesse tão bela, me teria retido por uma semana. Uma beleza mesmo, quase um modelo de composição renascentista, tudo muito conservado e restaurado em cores vivas e alegres, um clima delicioso de província calma e tranquila, toda cercada por muros, com arredores que não se pode deixar de visitar, como Bagni di Luca, sofisticada estância de águas minerais e Viareggio, no dizer de um taxista local una piccola Copacabana.
Mas a volta estava programada para aquele dia mesmo. Foi o tempo de pegar um táxi com um italiano casado com brasileira, para conhecer Ponte a Moriano, verdadeiro berço de meus antepassados, a 20 minutos de Luca, descer na pracinha, atravessar um pequeno regato, andar até a pitoresca estação de trem, perguntar pela família Grossi a duas pessoas que não tinham notícia (nessuno Grossi qui) e retornar a Pisa no final da tarde, com um ar melancólico e a cabeça nas nuvens.

Luca, Pisa, Firenze, Venecia, urgente. Aí, a calma dos últimos dias esvaiu-se de novo, inaugurando uma nova maratona que começou muito mal. De volta ao Hotel Victoria, em Pisa, sou informado de que só tinha feito reserva por um dia e, tendo saído cedo (para Luca) sem avisar à portaria, eles tinham tomado a liberdade de retirar minha bagagem do quarto para cedê-lo a um hóspede que tinha reserva para aquele dia. Esbravejei diante de uma recepcionista irritantemente impassível pedindo desculpas clássicas, espumei em italiano, bufei em portunhol, fiz uma cena na portaria abrindo ostensivamente a minha bagagem, à vista dos hóspedes, para conferir se não tinham roubado nada – acabei pagando a conta e saí pisando duro, direto à estação, rumo de volta a Firenze. Pernoite em Firenze e saída rápida para Veneza, na manhã do dia seguinte.

Veneza. Tarde ensolarada de domingo. Puro encanto logo à saída da estação de Santa Lucia, quando já se avista o grande canal com seus vaporetos e gôndolas. Pra variar, saio à galega procurando albergue, mochila nas costas, apreciando o movimento das ruas. Parece dia de quermesse paroquial. Como única orientação, uma dica do "Guide du Routard", publicação excelente para andarilhos e mochileiros, num tom satírico que entra até em detalhes sobre o bom-humor dos hospedeiros. Ele sugere a região de Canareggio, saindo da estação à esquerda. Valeu a dica: um lugar encantador, bem velho, com fachadas mal conservadas, sem polimento, com as manchas visíveis do tempo. Bairro boêmio, festeiro, noite animada, boa escolha. Muitos albergues no caminho, vou perguntando sobre vagas e ouvindo a mesma cantilena de Roma: sono completi, não há vagas.
Depois de vagar sem pressa de olho no cenário da estonteante Veneza, chego a um beco com seta e placa indicativa na esquina: Albergo Silva. Entro e sou muito bem recebido por um senhor gordinho e careca, que me confirma a vaga e me confunde na sequência. Pega um mapa e rabisca: siga esta rua principal, passa a primeira ponte, passa a segunda ponte, passa a terceira ponte, a quarta – e procure o número 3211, é lá. Pode deixar paga a diária, toma aqui a chave. Sinto-me embrulhado. Mas o hotel não é aqui? - Sim, é aqui, mas temos outros quartos independentes. Este apartamento é de dois quartos, que compartilham um mesmo banheiro no meio dos dois. Um já está alugado, o outro é seu.
Decido: não vou dar uma de caipira desconfiado, OK, toma lá o dinheiro, dê cá a chave, obrigado. E tomo rumo, preocupadíssimo. Na rua indicada, a numeração saltava de 3150 para 3250. E cadê o número 3211 ? Já ia admitindo o conto do vigário quando descubro que, entrando por uma daquelas ruelas típicas de Veneza, onde mal dá para se abrir os dois braços, a numeração prossegue à medida em que você vai se enfiando pelos becos por trás da rua principal – 3182 / 3194 / 3208 ...e cá estou à frente de um prédio de quatro pisos, fachada muito antiga, porta de alta segurança com tetrachave. Abro e me surpreendo com o interior moderníssimo, reformado, cheiro de tinta nova, muito limpo. Subo dois andares, nova porta com duas chaves de segurança, um corredor com banheiro e dois quartos laterais. Outra porta e, finalmente, um lugar para encostar a mochila e cair na vida. Quarto confortável com janelas estreitas que dão para o campanário de uma igreja ao lado (Veneza toca sinos o dia inteiro) e a curiosidade de saber quem está hospedado no outro quarto, uma pessoa de quem verei apenas os pentelhos na pia do banheiro comum, pentelhos sem caráter, não sei se de homem ou de mulher. Nossos horários não combinavam, quando um tchum no colchão, o outro tchan no cenário.
Veneza pira o turista pelo urbanismo exuberante e absolutamente imprevisível. Tinha tentado imaginar a cidade, antes de chegar lá, com base em filmes, fotografias e histórias. Nada conferiu. Tudo surpreende pelo nunca visto. Parece delírio: prédios mergulhados na água dos canais, com os primeiros pisos abandonados ao alagamento pela subida do nível das águas, gente tirando barcos da garagem para ir ao trabalho, à feira ou ao cinema, tráfego intenso de ônibus, gôndolas e barcos de transporte e passeio, tudo embarcado sobre as águas. Compro, por 8 mil liras, um passe para usar o vaporeto (barco-lotação) durante 24 horas, para qualquer destino – il biglieto jornaliero. A sucursal do Albergo Silva fica pertinho da fondamenta Cá Doro, embarco entusiasmado, quase babando. No grande canal, prédios magníficos, com lindas pontes de travessia como a de Trialto. Passo por cinco ou seis estações, desço na praça de São Marcos, a praça dos pombos e dos noivos, com suas orquestras populares vinculadas às casas de pasto espalhadas na imensa arena da praça, disputando o gosto dos turistas: tangos, clássicos, óperas e até canções napolitanas a que os venezianos resistem com ufanismo.
Veneza é mesmo romântica, sinto falta de Ana e, por um instante, lamento não ter podido trazê-la. É preciso dizer que, numa viagem como esta, costuma nos assaltar a vontade de ter por perto pessoas de quem gostamos. Pensei sempre – e muito – em meus chegados. Às vezes chegava a identificar seus rostos em meio à multidão de turistas. Mas resisti bravamente ao banzo e jamais me arrependi por ter optado pela carreira solo. Viajar sozinho tem prazeres indescritíveis – e o maior deles é estar absolutamente disponível para ver, ouvir, observar e entender o que nos parece estrangeiro. Em grupos de amigos e tribos familiares isto é impossível porque estamos a todo momento banalizando as impressões de viagem com nossos vícios tribais. Incluímos na bagagem os códigos do cotidiano e nos consolamos mutuamente repetindo nossas gírias particulares. Acabamos por não ver o que merece ser visto.
Daí, é embarcar de novo, descer em qualquer fondamenta e perder-se nos intermináveis labirintos e mágicas ruelas de Veneza. Sim, é possível caminhar por aqui em terra firme, desde que se lancem fora mapas e guias, porque, depois de três ou quatro quebradas pelas curvas dos becos estreitos, perdemos completamente a orientação geográfica e não temos a menor ideia de onde estamos. Atravessamos pontes sem conta, seguimos por beiradas e escadarias, atravessamos túneis e galerias, deliciamo-nos com as roupas coloridas e arranjos florais pendurados nas varandas e janelas, esperamos para ver a gôndola passar com românticos e ridículos turistas de riso amarelo e óculos escuros. De repente, você atravessa um sottoportego (passagem em arco sob as casas) e se assusta por achar-se num beco escuro e soturno, sem alma viva, absolutamente silencioso, arrisca mais uns passos e depara com um largo animado e festivo, cheio de gente e movimento. As grossas paredes de Veneza conferem m isolamento acústico que acaba sendo uma das marcas mais nesquecíveis e surpreendentes no cenário da cidade.
O caminho de volta quem nos ensina são as fondamentas, as plataformas de embarcação. É pegar qualquer vaporeto, ter tempo para ficar girando, fazer algumas baldeações e continuar navegando até identificar algum ponto reconhecível, que qualquer cidadão veneziano vai confirmar com prazer. O circular n° l, por exemplo, percorre toda Veneza e vai até a ilha de Murano, meca dos cristais. Não se esqueça de gravar na retina alguns pontos de referência notáveis, mas notáveis mesmo, porque os motivos arquitetônicos se repetem com frequência, as mesmas janelas venezianas encimadas por arcos e pinhas de formato bizantino, pequenos canais cortados por pontes absolutamente idênticas, a mesma iluminação recortando sombras e perfis expressionistas, de repente um largo iluminado que você pensava já ter visto e descobre que está a quilômetros de distância daquele. Se possível, espere a noite cair para conhecer uma outra Veneza mergulhada em reflexos luminosos à flor dágua e – se tiver a sorte que tenho – presenciar o que já se pressentia desde cedo: um acidente espetacular em que um vaporeto atropela e emborca uma gôndola de cheia de turistas, correria geral, desespero de senhores e senhoras americanas gritando por socorro e tentando escapar do afogamento, lançamento rápido de bóias, chegada rapidíssima das lanchas de salvamento com potentes holofotes, pronto atendimento médico e finalmente, para alívio da plateia sufocada, a retirada dos assustados turistas sem maiores gravidades.

Fim da grana, retorno urgente a Paris. Dez dias na Itália, 100 dólares por dia. Se depender de gente como eu, o turismo europeu está fodido. Acabaram-se os dólares, cuidadosamente guardados no famigerado cinto sempre amarrado à cintura, por dentro da calça – e administrados com rigor de contabilista. Tinha deixado 500 dólares em Paris para os últimos giros e as providências de retorno ao Brasil. Para falar a verdade, estava feliz de voltar a Paris, apesar de ter amado a Itália. A cidade dá sempre a sensação de que alguma coisa ficou faltando, algum lugar que não deu para conhecer, algum bistrô não descoberto, um show ou peça teatral imperdível. Ainda tinha 5 dias, os cinco derradeiros dias para tirar a diferença. Mas já dava para perceber que, mesmo depois de l ano em Paris, a mesma sensação me assaltaria: ainda há muito por ver.
Parto da estação de Veneza às 20:05 de sábado. Tinha feito reserva dias antes e, perguntado se desejaria uma "couchette" sem acréscimo de preço, embarquei literalmente na sedução e aceitei a oferta. Afinal, cairia muito bem uma viagem de volta remoendo as impressões de Veneza numa cama confortável. Dancei bonito. Levei um susto quando entrei numa cabine do mesmo tamanho daquela que vinha ocupando com seis poltronas, esta porém com 6 beliches, três frente a três. Entre um leito e outro, mal dava para erguer a cabeça. Se a mão pendia no cochilo, caía na cara do passageiro de baixo. O corredor entre beliches dava para passar uma pessoa magra andando de lado. E a bagagem tinha que ser acomodada num canto da cama mesmo. Todos os seis lugares ocupados. Viajantes deitados sem sapatos. Vidros fechados. Se quisesse sentar, não tinha jeito, obrigatório viajar deitado. Um horror. Pra piorar, minutos antes do embarque subiu ao trem um casal em lua de mel com toneladas de bagagem, o marido xingando esbaforido o consumismo da mulher, enquanto carregava malas e malas sob a calma coordenação da patroa: "Cuidado, esta tem vidros de Murano... Não deixa tombar aquela caixa". E tinham conseguido reserva em cabines separadas: ela na minha cabine, ele na do lado. Dirigiu-se a mim, que estava no corredor tentando harmonizar a promessa de uma viagem torturante. Queria trocar de lugar, para ficar ao lado da esposa. Reaji como um caipira, em péssimo inglês gaguejante: nada disso, daqui não saio, já me acomodei, sorry... Ele me olhou de um jeito tão suplicante, suando em bicas e preocupado em abandonar a jovem esposa com estranhos na cabine ao lado, que mudei de ideia na hora. Não custava nada. Fizemos a troca e fui para a outra cabine, igualzinha àquela que eu descrevi agora mesmo.
Damos a partida e tento me encaixar no buraco reservado à minha pessoa. Reviro daqui, mexo dali, sufoco, tusso e, com 30 minutos de viagem, decido passar a noite no vagão restaurante, abandonando a bagagem sobre o beliche, seja o que deus quiser. Opção brilhante, pelo menos até as 2 horas da matina, 5 garrafas de vinho depois, cochilando sobre a mesa. De qualquer modo, melhor do que aquela toca. assamos por Isele de Trequele, Brig, Sion e Lausanne, na Suíça e, acho ue já em território francês, Clarens, Vallorbe, Dole, todas anunciadas pelos alto-falantes das estações.

Último tango. Et voilá Paris encore! Manhã de domingo cedinho, não quero acordar minha amiga e resolvo fazer um tour de metrô até que o sol apareça de verdade. Só que me perco, primeira e única vez que me acontece, desço numa estação errada, vou para oeste quando queria ir para Bagnolet, tenho que fazer o trajeto e passar por quase todas as cores do mapa das linhas, subir e descer em várias estações, com mochila nas costas, resolvo desembarcar na Place de La Concorde, respirar à tona e admirar de novo aquele conjunto que ainda não tinha visto num domingo. Aí, sim, ligo para Simone e, como ela está com hóspedes, arranjou-me uma vaga na casa de Ana e René, logo no quarteirão abaixo, um casal simpaticíssimo, com uma filhinha risonha, Lia. Ele ator de teatro, de perna engessada, lendo e tomando aulas de acordeon o dia inteiro. Reservaram-me o quarto do casal, cheio de livros, todos os Brecht e Stanislavski, literatura francesa e muita poesia. Deitei e rolei até onde consegui acessar o francês.
Fui cuidadoso em meus hábitos noturnos, para não incomodar a família, ali em cima podia fumar de janela aberta, passar a noite lendo e escrevendo, me senti melhor do que na casa da Simone e Didier, sempre muito azafamados, em eterna correria com os filhos e com o tempo da vida deles mesmos. René e Ana corrigiram a minha má impressão da vida familiar francesa. Generosos, amigáveis, deixavam mesa posta com lanche, música, arte e calma circulando na casa, apesar de saber que também eles estavam com problemas de trabalho e subsistência. Queriam porque queriam adotar urna criança no Brasil. Numa de minhas saídas noturnas, Ana disse a René: donnez lui la clé de securité – e ele respondeu: il ne faut pas, não precisa, vivemos num bairro tranquilo – e bastou esta fala do ator para que eu me aventurasse até mais tarde pelas ruas de Paris, sem medo de perder o último metrô ou ser assaltado por algum maluco.
E aconteceu um caso engraçado. Mostrei a René um livro que havia comprado num se num sebo de Roma, uma comédia de 1912, de autor francês, vertida para o italiano. Tinha começado a ler e estava me deliciando, queria apenas que ele, como homem de teatro, visse e comentasse. Aí, de novo, levantou-se um abismo entre a minha e a língua dele. Entendeu que estava ganhando um presente, olhou a capa, gostou do que viu, apertou o livro contra o peito, curvou-se como um japonês e exaltava: "Merci, merci beaucoup, superbe!". Não teve jeito, ficou com o livro, devo ter feito uma cara de bobo mas consenti, mesmo tendo projetado trabalhar sua tradução no Brasil, já que tinha gostado muito das páginas iniciais. Não lembro o nome do autor, nem o título, fiquei bloqueado com o evento desastroso.

Guia de Paris. Em casa de Simone, hóspedes ilustres: três irmãs balzaqueanas, filhas de família fazendeira de Patos de Minas, marinheiras de muitas viagens, completamente direferentes uma da outra: a mais velha molequíssima, a do meio sizudíssima e mal-humorada, a mais jovem de nariz empinado, empetecada. Dedicadíssimas às compras, parecem que vieram aqui para isso, percebo que estão muito preocupadas em circular sem guia e se perder em Paris, perguntam-me se não posso guiá-las. A proposta me parece interessante e, pretensioso, topo na hora. Oferecem-me 50 dólares por dia. Está ótimo. Armei-me de guias e livros, fiz um estudo preliminar na noite anterior e eis-me em Paris guiando três distintas senhoras compradeiras. Lojas e Louvre, eis o programa. Gostei muito, foi divertidíssimo acompanhar as escolhas aflitas, os gritinhos de estupefação diante dos óculos e dos casacos de pele no l'Opera de Garnier, encher sacolas e mais sacolas com os maravilhosos tecidos de Montmartre, perto do Sacré-Coeur, nas ruas de Rochechouart e Lafayette, nas perfumarias da Rue de Rivoli e na loja do Louvre. Fui um guia exemplar, paciente, só não tinha a menor ideia da história daquelas ruas, daqueles locais, apenas guiava minhas clientes de metrô em metrô, que o metrô era o seu verdadeiro pavor, e a minha delícia. À flor da terra alcalmavam-se voltavam a empolgar-se.
No segundo dia, depois de uma maratona das boas, já final de tarde, consegui convencê-las de que precisava ficar na cidade, abandonei-as na última estação antes de chegar a Bagnolet, liguei para Simone recepcioná-las, sentei num bistrô e comecei a gastar o meu salário de guia. Quando olho para o outro lado da rua, através dos vidros, vejo a placa: Théatre de la Porte San Martin. Hoje. "Lês Cotelettes", une pièce de Bertrand Blier dirigida por Bernard Murat. Até aí tudo bem, não conhecia ninguém. Mas o cartaz destacava ainda: com PHILIPPE NOIRET, Claudine Closter, Micha Bayard e Michel Bouquet. Philippe Noiret! O craque de Cinema Paradiso, A Comilança, O carteiro e o Poeta e tantas obras do melhor cinema contemporâneo! O espetáculo estava anunciado para as 9 da noite, eram 7, será que consigo um ingresso? Decidi ficar bebendo ali até abrir a bilheteria, corri lá, consegui um lugarzinho no terceiro andar das galerias, emocionei-me ao ver Philippe ao vivo ali à minha frente, ou pelo menos a sua careca que era o que eu mais conseguia enxergar lá das alturas em que me encontrava, duplas alturas – a das galerias e a dos conhaques que tinha tomado antes. E entendi que ainda tenho que estudar muito francês para conseguir traduzir diálogos de teatro. Não teria entendido quase nada, não fosse uma portuguesa sentada ao meu lado, que me socorria de vez em quando.

Les derniers jours. Foram tranquilos, vagantes, com a delícia de repetir roteiros que tinham me encantado na primeira etapa da viagem e a surpresa de uma tarde no Musée Rodin e Claudel, jardins paradisíacos, clima ameno, uma bela refeição sob árvores, algumas fotos para japonesinhas solitárias, últimas compras, flores para Ana, René, Simone e Didier, volta mais calma ao Louvre, despedidas, freeshop no aeroporto – os indefectíveis chás, champagnes, vinhos e patês. Novamente uma viagem apertada no lotação da AirFrance. E de novo o meu Brasil, que tinha mudado muito nestes 25 dias.



Sávio Grossi
Outubro 1997

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

CARTAS

Setembro/2001

Caro Totonho,

Feliz em saber que deu tudo certo. Por mim, nunca tive dúvidas sobre o poder emanancial das petúnias sobre o nosso programa de qualidade. É realmente incrível como, a cada dia, Margarida grita mais baixo e Afonso consegue encaixar o chapéu no cabideiro a 6 metros e quarenta centímetros de distância. Sabe o que isto significa? Que a camada de ozônio não perde a mania de filtrar os átomos de angustura com uma voracidade espantosa. Jamais esquecerei o dia em que o nosso Lopes adentrou o cenário com os olhos esbugalhados e aquelas orelhas de ébano, prognosticando o advento das hordas budistas sobre o viaduto das almas. Vocês riram, mas eu, no íntimo, sabia que o nosso Lopes tinha um encontro marcado com o chupa-cabra naquela mesma noite e por ele foi abduzido. Deu no que deu e hoje vocês todos sabem que a vida é muito maior do aquele buraquinho no sofá da Jussara. Não deixe de me posicionar sobre o ciclo das amnésias, OK?


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Agosto/97

Amigo Pereira,

Segue o material que lhe prometi para observar o cio dos pernilongos. A lupa só funciona se você pingar duas gotas de nanquim em cada olho vivo. Em casa alugada, feche a cortina da janela das crianças que é por onde esses coleópteros de bico fino preferem escapar no inverno. Se for verão, ligue o liquidificador e bata duas claras em neve, espatule as paredes da sala do vizinho e leve o seu bichinho de estimação ao shopping mais próximo. Nunca – mas nunca mesmo! – ouse operar sob lâmpadas halógenas. Os resultados poderiam ser percebidos em Singapura. Prefira sempre o estrôncio para determinar a distância entre o ápice das asas e cuide de incensar a imagem de nossa senhora escondida no relógio da cemig. Já ia me esquecendo do mais importante: o Hermes vai passar manteiga no buraco das fechaduras antes de tudo começar. Qualquer dúvida me ligue.


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Fevereiro/2003

Antônio Victor meu bom,

Além disso, tem outra coisa: sempre que entra pelos meus ouvidos o batuque de um pedreiro martelando o tacho fumegante de goiabada cascão, me emociono às lágrimas. Penso nos pobres japoneses que criam leitõezinhos em prédios de 18 pavimentos. Lembro de vovó Isaura e seu vestido de seda transparente, deixando entrever a ponta dos mamilos pretinhos. E, acima de todas as coisas, me dou conta de como deus é enorme em suas faculdades de fim-de-semana, em Lafaiete ou Divinópolis, forjando advogados de porta de cadeia com a missão de promover a cidadania renascentista que todos admiramos com fervor. Não dá outra: é ouvir Carlinhos Brown no toco do meu redifone e a vida volta ao seu curso, anus beliscam carrapatos no dorso das vacas, sirenes enchem a noite de alegria e meninas de rua mijam nos canteiros da nossa jovem capital. Ainda bem que tem remédio pra tudo. Me avise quando Jonas vomitar.

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Dezembro /2002

Suzana Querida,

A torre de Pizza acaba no deserto de Catamarã. Quando penso nos anos que perdi tentando compreender o meu professor de trigonometria dá vontade de mergulhar no Arrudas e sair lá na frente, nas ilhas virgens do Mingu. O problema é que eu teria que braças léguas rio acima e meu médico continua afirmando categoricamente que o único exercício que me posso permitir é pastel de angu. Obedeço, contrariado, mas obedeço. Aprendi desde criança que os mais velhos não são assanhados por acaso. Ao contrário, têm bons motivos para agir assim, babando nas coxas das mocinhas e fritando minhocas em caçarolas de chumbo. É como dizia Percília em seus momentos de fúria: as armas assinaladas não fazem a virtude dos barões nem são capazes – nunca serão! – de erguer impérios em proveito próprio, mas sempre na perspectiva do admirável mundo que já começa a amarelar na linha do horizonte, trazendo consigo bandos de gansos destramelados cuja íris refrata o espectro de Netuno. Concordo plenamente.

O CAOS SOBERANO

ou: DEUS É O DIABO


Hoje amanheceu um belo dia vazio, propício ao consumo de ventos. O trânsito de automóveis não flui com a mesma normalidade. Ressaca de assassinatos. Nenhum pedido de resgate. Nenhum alerta ao corpo de bombeiros. A polícia descansa. Um homem sem ninho se recolhe no vácuo de notícias, reclama um decreto de calamidade, reza para que amanhã despenque um avião dos céus e entre as vítimas se encontre um vago parente próximo.

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Naquele tempo os homens andavam inebriados por alguma estranha onda que parecia ter o poder de arrancá-los do inferno em que viviam. Teciam frases como quem dá ração aos porcos. Fabricavam orações. Idolatravam a palavra da salvação. Acreditavam piamente que o universo lhes daria o que desejassem com fé e que o sucesso lhes seria concedido na medida do seu merecimento. Não se esmeravam por merecê-lo. Exalavam o bafo de cavalos ocupados. Trotavam em direção ao breu do céu.

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Tudo e Nada. Sopram-me fados renitentes, derramam vícios eruditos sobre o meu ofício, pelejam contra minha fé, me atraem e me repulsam – o tudo e o nada. Quero seguir os entrementes, a tessitura do drama. Acabo interrogando a origem da vida e a promessa da morte. Nada me acalma, tudo me devolve ao tormento da minha pobre filosofia. Nenhum registro de pane emotiva nessa existência calma e subalterna ao poder de tudo e de nada. O caos é soberano. A situação prossegue.

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O caçador exímio não se contenta com alvos fáceis. Seu código de ética não lhe faculta agredir a inocência dos descuidados. Antes de arremeter contra sua presa, o predador obriga-se a produzir um sinal de alerta. A arte da caça manda provocar o pânico, pressentir o rito da escapada, gozar o teso muscular do alvo que se esquiva. Esta é a delícia do caçador. Alvejar pelas costas, sem o susto da premonição, fere o mais elementar preceito do jogo persecutório. Negar à caça a chance de fuga ou retaliação é ato indigno do caçador ético. Pior: condena-o à inglória inominável de um dia deixar-se abater pela morte natural. Glória é morrer na luta.


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Há os que acham tudo divino. E os que enxergam a mão do demo em toda parte. Eu convivo com deus e o diabo na terra do sol. Acho tudo maravilha, enxofres e jasmins.

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Sonho juntar em mim todas as outras partes desgarradas de mim. Partículas do meu inteiro particular. Matéria do meu sangue, fonte da vida que corre em minhas veias, que me nutre, que me cresta, me dá sede. Hoje não tenho idade. Acho graça de viver. O tempo inscreve em minha pele tristezas e alegrias rupestres, nascidas de todas as eras. A terra é o meu berço, minha origem. A poeira é terra dando adeus. Mas é de barro que se faz meu sonho: de esperar a chuva.

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Rejeitar a idéia de deus é o sinal mais evidente do limite da mente humana. Quando não se compreende o mistério da obra universal, convém atribuí-la a deus, ao menos em reverência ao caos engendrado nessa obra. Não ao deus das profissões cegas de fé, mas ao deus gerador da matéria, fonte da energia e ordenador do movimento perpétuo. Acaso que deus é esse? Não é possível alcançar o seu mistério. E qual é o problema em conviver com o mistério admitindo a sua presença inarredável na equação do nosso imenso esforço de entender esse mundo? O limite do homem é a impossibilidade de admitir tudo e qualquer coisa que não seja capaz de compreender e explicar. O mistério habita entre nós. E nos convida a participar da obra da criação. Não há como recusar o ofício.

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Amar não é preciso. Às vezes, sem aviso prévio, uma força de atração muda a órbita dos planetas e o tempo vai para o espaço. Nós que vivíamos sobre um disco plano, à borda de abismos insondáveis, mergulhamos no vácuo da paixão e voltamos ao ponto de partida. Outras luzes, outras conjunções. O que jazia inerte à beira do caminho emerge de repente e sinaliza marcos de restauração. Dormimos ultimatas e acordamos primatas, graves de filosofia, escovando os dentes e interrogando a existência diante do espelho. Tudo porque um cometa atravessou o nosso céu e - nada como um dia após o outro – um salto quântico se anuncia para as próximas horas. O mundo nunca mais será o mesmo.

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Em caso de emergência, sustentar o silêncio. Buscar palavras que sempre existiram no ar, na voz dos animais, nas águas, no coração das pedras. Pressentir o som da pronúncia antes de se pronunciar. Poupar o próximo das reiterações, a não ser para recompor convenções. Devolver à palavra o seu sentido original para que ela possa suportar conotações sem perder o senso. Fazer uso da matéria elementar para cifrar a nota do cotidiano. Não se deixar transportar pela emoção, a menos que ela tenha manhas de provocar o riso ou revelar o ridículo da existência. Ou simplesmente calar e confessar que faltam palavras.

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Passado o susto dos trovões, o vivente empina a fuça e se encanta com o azulão do firmamento, o cheiro bom da magnólia, a magia do negro manto estrelado, a possibilidade de esmerar-se na caça, às vezes não sendo possível saciar a fome do seu desejo, mas sempre aprendendo uma nova técnica de conquista ou resignação. Dependendo do revés, a vida pode crescer ou encolher.

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Custou mas chegou. A humanidade começa a desconfiar que nem toda matéria tem cor, tem sabor, tem textura, tem volume acessível aos seus sete sentidos. A ciência finalmente se vulgariza. Inaugura-se um novo sonho alquímico: o poder de atrair ou repulsar a energia quântica pela força do pensamento construtivo e da querência. Tudo sob controle. Indiferente à proliferação das seitas, a famigerada dama continua afiando a foice para a ceifa inexorável. Amanhã será outro dia.

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Com o cérebro partido em hemisférios, os animais superiores tentam se ajeitar em seus dois cômodos. Procuram caminhar em equilíbrio, perder a compostura causa muito desconforto. Uma mão procura a outra, precisa compensar o gesto opositor. O mínimo tropeço é capaz de tirar o sono desses animais. Perder o prumo pede internação e terapia. Louco é o animal que não se ajusta a esta bipolaridade, ficará marcado por cortes e mutilações. O doido se adivinha pela atitude polar e solitária. O gesto não correspondido pela outra parte – mensagem sem resposta – é o primeiro sintoma do estado de loucura. A lei exige simetria. Este é o padrão da criação, o código de barra que vem de fábrica e precisa ser interpretado pelas máquinas leitoras. Portanto, animais bipolares, tratem de alinhar-se aos seus hemisférios. E não desprezem suas gravatas. Elas são o fiel da balança.

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Aos mágicos e adivinhadores se reserva a quarta vala do oitavo círculo do inferno, onde ainda têm muito o que fazer. Sublimar a realidade, esse tributo insuportável. Inventar a alma. Iludir pobres diabos a quem nunca tocou a mensagem do real. Aliviar o peso da matéria que pesa sobre a sua existência condenada à culpa sem esperança de redenção.

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O que eu amei demais foi sua coisa inteira, sua arquitetura multimídia, seu design contemporâneo do porvir, o seu poder de aparecer e sumir do mapa sem perder o seu lugar em cena, a capacidade de dispor o corpo a serviço da sua alma, usar máscaras que são a sua cara, pronunciar o som das palavras com o timbre das pedras e dos metais.

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Longos dias e noites eu ouvi estarrecida maravilhas e misérias eloqüentes. Meu semblante congelava o riso e tecia músculos dormentes entre o espelho e a espada. Longas horas eu gastei me devorando de mistério e culpa, bolinando o feminino rejeitado em líricas lembranças e promessas pérfidas. À minha frente, o macho em plena onipotência, fragilíssimo, quebrável em mil cacos de demência santa. Longa estrada percorri sedenta de mim mesma, estranha de mim mesma, nula e plena. A sabedoria, a calma, o movimento, onde andavam? e por que me abandonavam nessa estrada triste? Eu, que era doce, me amarguei e fui tentada pelas artes da esperteza. Dentro de mim talvez morasse há muito tempo um duende mórbido. Foi quando coloquei de molho minhas barbas, tripulei embarcações do coletivo inconsciente, revirei baús de antigos mapas. Novos rumos apontaram para a ilha do farol em pleno mar mediterrâneo, eu náufraga. De repente, brotaram palavras duras, um jorro incontrolável de memoriais palavras querendo nascer a qualquer custo, a fórceps, marreta, dinamite, qualquer jeito que me libertasse para sempre deste jugo insano e projetasse em minha vida outra vez, de novo, o sentimento do mundo, vasto mundo.

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só pode existir uma explicação para a pessoa que cisma de viver escrevendo: uma inarredável urgência de traduzir o sentido da vida e descobrir que para isto tem por único recurso resgatar a raiz de todas as palavras que já ouviu alguma vez em algum lugar e que não foram suficientes para esclarecer o que ela queria saber da vida apenas lhe deram uma vaga noção do que ela suspeitava e então tentar recompor a trama da linguagem para imaginar a vida a partir das palavras que ela registrou desde o primeiro sopro e que depois de um certo tempo passaram a não prestar um bom serviço ao seu entendimento das coisas e aprender a pronunciar de outro modo essas palavras já sabidas que de repente assumem um novo sentido para ela e registrar sobre uma folha branca de papel ou uma tela vazia de computador essa nova pronúncia descoberta com prazer terrível e é muito provável que dessa tentativa ninguém jamais tome conhecimento além dela própria esta pessoa que cisma de viver escrevendo

ANIMALIA (contos)

AMOR DE PACA

Tá certo que o Ademar me pegou numa hora de fraqueza, sentindo falta de homem no meu canto. Foi chegando de mansinho, sem forçar a barra, até que um dia seu olhar brilhou no meu e eu senti a fome dele crescendo pra cima de mim, desesperado de explorar a minha gruta. Fazer o quê? Perdi a pose. No meu lugar você faria a mesma coisa, minha filha, porque o cara é bom de serviço e hoje em dia competência é artigo raro, você sabe muito bem disso, lembra aquele bonitinho que te decepcionou pela falta de poder? Pois é. Acabei dando mole e quando vi já era tarde, estava amando o cafajeste, pior ainda: dependendo dele pra ser feliz. Uma coisa é um romancezinho desses sentimentais para enganar inocente, gozar são outros quinhentos. E eu gozo demais com o Ademar, o safado tem a manha de me deixar de quatro. Sabe a que horas ele gosta de me procurar? Você não vai acreditar: cinco de manhã. Bate a campainha lá em casa todo dia de madrugada, diz que gosta de pegar a paca quente no ninho, uma tara dele, sei lá. Tive que me sujeitar. Depois da transa, uma duas três vezes, ele toma uma chuveirada, enquanto eu sirvo um cafezinho na cama e às 8 e meia ele já saiu para o trampo dele, me deixando bem disposta para enfrentar o dia. Virou meu vício, minha ginástica matinal. O que ele faz na vida? Sei lá, diz que é corretor imobiliário, não quero nem saber, para mim ele é o meu trepador profissional, o bombeiro que vem desentupir os meus canos todo dia, o meu roto-router, meu massagista, meu psicanalista. Por falar nisso nunca mais procurei o Dr. Edvaldo, joguei fora o meu rivotril, ando com a cabeça boa, até a enxaqueca sumiu. Recomendo o tratamento, Marinalva! É uma maravilha! Te emprestar o meu Ademar? Que que é isso, minha filha? Vai à luta! Esse é só meu, ninguém tasca, é o meu mucamo e o meu feitor, faz de mim o que quiser. O quê? É claro que eu pago bem. Ele nunca exigiu, tem a delicadeza de sempre me pedir emprestado, diz que vai pagar logo que puder. Não faço questão, dinheiro serve pra quê? Não é pra dar prazer? Graças a deus a pensão que recebo do falecido dá e sobra. Ai, meu deus, quanto tempo eu perdi gastando com esses pacotes turísticos a Maceió sem saber que a felicidade estava aqui mesmo, pronta pra bater à minha porta todo dia de manhã e me transportar para o país das maravilhas, sem museu e sem igreja para visitar, sem queimadura de praia, sem aquele cheiro horrível de hotel 3 estrelas. Ficando doida, eu? Ai, Marinalva, você não sabe o que é bom. Olha aqui, minha filha, já são 11 horas, vou dormir, tenho que descansar, ficar prontinha pro meu Ademar, daqui a pouco ele chega. Tchau, me liga na hora do almoço, tá bom? Preciso comprar um terno novo para ele no shopping, você me ajuda a escolher?

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CADELA


Quis viver com ela para sempre e ela me disse: fica à vontade e vai embora quando for a hora. Quis morrer com ela e ela falou: agora é cinza, meu tempo de morrer já é passado. Tentei encontrar a palavra justa e não achei. Fiquei perdido ao seu redor, cego de luz, tonto de querer amar. Nunca me senti tão perto de uma estranha. Somente a ela ousei pronunciar a fórmula banal, te amo, e ela não me acreditou. Traçou um diagrama de macroeconomia para elucidar o meu amor patético. O buraco é mais em baixo, ela falou, amar são outros quinhentos. Propus fechar contrato de seis meses, com cláusula de prorrogação, mas o tempo foi para o espaço. Tudo se transformou em nada. Mera inscrição do transitório. Pós-matéria. O que sobrou? Salgar, selar e congelar a carne, filha do carbono e do amoníaco, para a rápida hora do banquete inacessível aos cães.


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CABRITA

Gostei do jeito que ele chegou varrendo o ambiente numa visada larga, sentou na primeira vaga, pendurou o chapéu na ripa da cadeira, pediu uma cerveja sem extravagar no gesto, me semblou homem decente. Tem uns que já entram com panca de bacana, sabe aquele tipo que olha por cima como se quisesse sem querer? Puro medo, veneno brabo. O cara vem aqui atrás de puta e morre de medo de puta, acha que é raça baixa, perigosa. Esse a gente atura pela paga, gosta de mostrar que tem dinheiro e se acha no direito de ser rude com mulher de zona, tratar no solavanco, mas em compensação despeja nota de cem na cara da gente, quase com raiva. A mulherada saca logo, tenta escapulir, mas a regra da casa é clara: freguês não pode ficar sozinho na mesa por mais de dez minutos, tempo suficiente para tomar fôlego no ambiente. Depois disso passa a valer o rodízio e a menina da vez tem que se chegar com um chamego e uma conversa de boavinda. A maioria pensa que a gente gosta é só de pica e de dinheiro, muito de vez em quando rola uma conversa boa que faz a noite mais apetecível, de pica a gente sente até enjôo pela fartura de toda noite, mas atrás dela vem dinheiro e profissão é profissão, não se recusa por capricho bobo.
Aquele não. Tinha o dom da simpatia, um sereno que chamou a atenção da tropa da casa. Lurdinha ameaçou tomar a dianteira mas era a minha vez no rodízio, espetei nela o osso do cotovelo e me precipitei para a mesa do elegante. Que dama não gosta que o cavalheiro se levante e puxe a cadeira para ela se sentar? Foi o que ele fez, e ganhou ponto comigo. Veio desfiando uma conversa rasa, clara de entender, que era viajante, estava cansado de estrada, fazia três meses não via a família, que passava ali na rua por acaso, viu a luzinha roxa e decidiu buscar conforto entre pessoas por quem a vida inteira sempre tinha a maior consideração, mulheres dedicadas à santidade de ofertar prazer e companhia a um sujeito desprovido de assistência, cansado sem ninguém, carente, longe dos seus. Tinha uma voz macia, gostosa de ouvir, e falava olhando bem no fundo do meu olho. Não avançou, não enfiou a mão nas minhas coxas, me carinhava só com o jeito de falar. Para esse eu dou de graça, só cobro a taxa da casa, foi o que pensei primeiro. Coisa difícil de acontecer na carreira prática, esquecer que é puta e lembrar que é gente. Naquela noite ele me deu o dom, quem milita na praça sabe o quanto vale essa prenda.
Caiu ficha nova na maquininha, a voz de Altemar Dutra cobriu a dele: veja só que tolice nós dois brigarmos tanto assim. Ele ouviu calado, respeitoso, de vez em quando fechava os olhinhos de saudade, me deu vontade de passar a mão no seu cabelo mas parei no meio da intenção, senti pudor não sei por qual motivo, e olha que pudor de puta é coisa séria, comichão de amizade periga virar paixão. Aí ele me chamou pra dançar, enrolou meu corpo com firmeza, encostou seu rosto e me deixei levar pelo salão ao seu comando, dava para sentir a inveja das meninas e uma coisa crescendo lá em baixo, cutucando o meu desejo. Ficamos assim abraçadinhos três boleros num bate-coxa muito mais gostoso do que trepada em colchão macio. Era tudo o que eu queria, rezei a deus para retardar a hora do consumo, adiar o rito de subir ao quarto
para extrair o carnegão, me deu o luxo de não me entregar muito fácil logo assim no primeiro encontro, vê se pode, coração de puta às vezes finge que amolece.
E ele teve a sensibilidade de compreender minha condição. Levantou da mesa, arranhou os meus cabelos com a ponta dos dedos, pegou a mão da Lurdinha e subiu a escada com ela para o quarto. Nem passaram vinte minutos e os dois voltavam ao salão, ele com um sorriso de satisfação que lhe dava um tom meio palhaço no rosto moreno, nisso eu nem tinha reparado antes. Pagou a conta e foi embora sem me dar adeus.

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O RABO FELPUDO DA RAPOSA

Ferrugens, trincas na parede, pane de telefonia, infiltrações, goteiras no telhado, invasão de marimbondos, trepadeiras vorazes, fiações avariadas, fusíveis de imprecisa resistência, portas crestadas, lascas no adobe das paredes, madeiras podres de chuva, cortinas rasgadas no salão de banho, efeitos deletérios do tempo sobre a matéria perecível – tudo a exigir urgente intervenção. Está passando da hora de tomar providências enérgicas – gritou Helena após o jantar – senão a casa cai. E deu um murro na mesa.
Durante exatos 40 dias, ela se dedicou ao projeto da reforma sem descansar um minuto. Redesenhou o jardim, refez o caminho das pedras, mandou plantar cerca viva, comandou, de chicote na mão, um exército de operários especializados em reforma e restauração: consertos, podas, replantios, correções da acidez do terreno. Ordenou a dedetização da casa, revisou os circuitos elétricos, contratou bombeiros para sondar encanamentos, pedreiros para repintar os muros e impermeabilizar paredes, trocou as telhas quebradas na última chuva de granizo. Nosso sítio virou um canteiro de obras, mas valeu a pena.
Ficou uma beleza! – comentei ao retornar de uma providencial viagem de trabalho que me poupou da sua fúria restauradora. Ela me olhou de cima a baixo, um olhar estranho, passou a mão sobre uma ruga do meu rosto, sorriu e agradeceu: - Gostou mesmo, meu bem?
No dia seguinte Helena saiu cedo e voltou com uma sacola recheada de compras. Aqui, meu lindo, comprei pra você, me passou um shampoo para disfarçar os cabelos brancos; ninguém agüenta mais aqueles molambos seus, jogou na minha mão três camisas listradas e uma bermuda que mais parecia florada de campo rupestre; abriu uma caixa de creme facial, aplicou um pouquinho nas rugas do canto do olho e começou a ler na bula os milagres do rejuvenescimento à base de pepino. Comecei a desconfiar que a sanha reformista estava longe de acabar, mas só fui ter certeza mesmo quando ela me passou um papelzinho: toma, marquei consulta com o Dr. Romero, quarta-feira às 3 da tarde, levei aquele retrato seu e ele falou que é coisa à toa consertar esse gancho do seu nariz, dar uma empinadinha nele. Sem dúvida, meu amor agora tinha projetos de me reformar. Queria consertar minha arquitetura barroca, passar verniz no opaco do meu feitio, patinar minha fachada castigada pelo tempo.
Relutei mas aceitei me refazer só para agradar Helena. Agora, me olhando no espelho, sinto que não sou mais eu, mas em compensação Helena anda muito mais feliz comigo.


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OLHOS DE VACA

Existe muito pouca diferença entre os olhos da vaca que eu conheci na fazenda do meu tio e os olhos de Percília. Ambos falam de uma tristeza resignada a uma sina que não ousam confrontar, como se não tivessem a mínima chance de mudar o rumo das coisas que notoriamente não agrada a nenhuma das duas. Os de Percilia revelam uma melancolia mais acentuada pelo traço da boca, crispada e curvada para o chão, talvez pelo fato de muito procurar sem encontrar um jeito de escapar ao seu destino, o que lhe deu pela vida afora uma triste fama de queixosa e reclamante contumaz. A vaca que eu conheci na fazenda do meu tio também me parecia sem a mínima noção do que fazer para evitar sua ruína, mas sustentava uma postura digna em sua ruminação silenciosa, me dava a impressão de estagiar um rito de preparação, como se já previsse a sua hora de deixar-se conduzir resignadamente à trilha do matadouro, e nem por isso cabia qualquer queixa, aquele era o seu destino traçado. No mais são iguais, os olhos de Percília e os olhos da vaca. E fui me apaixonar logo pela Percília, a vaca da fazenda do meu tio foi só um lampejo de admiração, desconfio que teria sido mais feliz com ela mas dessas coisas a gente nunca pode ter certeza absoluta.

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A HORA DA LOBA

Quando ela me abraçou senti a dureza dos seus ossos sob a pele e não pude deixar de pensar no viço daquele corpo de trinta anos atrás, cheio de carne e sangue latejante que eu sugava com furor adolescente. Ela também gostava de me pegar, me usava com proveito, sabia tirar prazer de mim. Agora estava ali como um balão vazio entre meus braços, demorou o rosto colado no meu, me apertou com força, me beijou.
- Câncer, soprou no meu ouvido sem que eu perguntasse nada, perdi doze quilos em três meses.
- Finalmente você conseguiu, respondi meio sem jeito, e nem precisou fechar a boca.
Zamira sempre teve gana de traçar deus e todo mundo. Não era gula, era uma vontade de comer, um apetite voraz que marcava sua fama no território. A turma se divertia em vê-la diante de um prato de comida, manejando os talheres como operária de fábrica, lambendo os beiços, estalando a língua, ronronando de prazer. A mesma sanha que espantava os homens que ela cismava de caçar em suas noites de loba. Não qualquer um, é bom que se diga. Fazia questão de escolher a dedo, observava, conversava, selecionava com critério e só partia para cima quando tomava opinião. Caçava o suficiente para matar a fome, não seduzia para colecionar. Poucos resistiam ao encanto de sua beleza rara, uma mulher à frente do seu tempo, nem aí para os tabus da burguesia, livre e dona do seu querer. Nunca foi vulgar, vestia-se com elegância simples, tinha a manha de conduzir seu corpo com graça, olhava nos olhos da gente, não sabia fingir, falava claro o que tinha que falar.
Vinte anos se passaram e a distância não tinha dissipado a presença de Zamira em minha vida. Vivia pensando nela, quantas vezes me sucedia indagar o que ela faria em meu lugar antes de tomar uma decisão, talvez porque só com ela me tinha sucedido a delicada experiência dos amantes que não querem pertencer um ao outro. Um belo dia partiu para Barcelona sem dizer adeus, perdemos o contato. De volta ao Brasil depois de longa temporada, ela telefonou marcando encontro e agora estamos aqui na calçada em frente ao teatro da imprensa, enlaçados num abraço terno, olhando-nos com certa estranheza e alguma intimidade que nossa história comum ainda nos concede apesar de tanto tempo separados. Eu tinha sugerido assistirmos a uma nova montagem de Molière, ela vacilou – Tartufo, de novo? Não é melhor tomar um vinho e conversar? Claro que era, dobramos a esquina e entramos no Saloon, velho ponto de encontro da turma, à la recherche.
Mesmo doente ela não tinha perdido a chispa, aquele jeito de agitar os braços e jogar os cabelos para trás enquanto fala, a mesma energia solta, ainda dava para perceber o brilho do seu olhar por trás do véu que começava a turvar a fonte original. O rosto descarnado deturpava a beleza dos seus traços e projetava seus dentes branquíssimos para fora da boca miúda. Falou da sua vida em Barcelona, de uma solidão incompatível com o seu jeito fácil de fazer amigos, da sua tormenta por não conseguir aculturar os machos da Catalunha e acomodá-los ao seu gosto de comer, sua inaptidão para firmar contratos de acasalamento, mencionou alguns romances sem conseqüência e, só para me deixar chocado, anunciou sua decisão de descansar da luta e viver em castidade.
Conta outra, debochei, você não conseguiria. Mas ela acabou me convencendo: três anos sem macho, acredite se quiser! E olha que não me fez falta por lá, só agora no Brasil é que voltou aquele velho comichão de caçar, mas aí adoeci e o desejo ficou no limbo. Senti uma ternura imensa por ela, peguei a sua mão, fiz um carinho com a ponta dos dedos sobre os seus cabelos ralos, enfraquecidos pela quimioterapia. Ela se esquivou, pedimos mais um vinho.
Carcinoma de colo de útero. Neoplasia do órgão de reprodução feminino. O ninho da maternidade injuriado por células que insistem em reproduzir-se sem controle. Ela tentou associar sua renúncia ao sexo, sua falta de vontade, à sorrateira instalação da doença, ainda que não produzisse sintomas visíveis. Chegou a perder a compostura, deixou escapar a queixa: por que logo eu? Você e mais milhões de mulheres com câncer de útero – respondi sem intenção de consolar – você e outros milhões de homens com câncer de próstata. Não há eleitos nesse processo, o acaso decide de acordo com sua herança genética, seus hábitos de consumo e sua capacidade de lidar emocionalmente com a angústia de viver. No mais, mais cedo ou mais tarde, todos nós adoecemos e isso é que é difícil admitir, que também somos frutos que maduram, caem do pé e apodrecem.
Zamira ficou um tempo em silêncio, olhos fixos nos meus, um sorriso suave nos lábios. Tem razão, disse, somos passageiros nesse trem, mas não pense que estou amargando por querer amargar, é que essa coisa causa disfunções, os hormônios se alteram, o tratamento é violento, a gente acaba perdendo o prumo. Caí na mão do sistema de saúde, me entreguei completamente, só agora consegui recuperar a autoridade e já decidi: não faço mais radio nem quimioterapia. Vou deixar rolar até o fim, só não posso esquecer de carregar na bolsa umas drogas para amenizar a dor que é danada. Se estou rumando para o fim vou tratar de fazer isso com dignidade, a céu aberto, e não na prisão dos hospitais, até a última força que me sobrar. Sabia que a Bélgica recebe hoje um grande fluxo de turistas, doentes terminais sem esperança de cura, em busca de uma morte misericordiosa? Lá a eutanásia é legalizada.
Achei que devia interromper: tudo bem, mas antes de tomar o rumo de Bélgica e o caminho da morte, proponho uma trilha alternativa: vamos lá pra casa, levamos mais um vinho, faço um jantar para nós, vemos um filme, você dorme por lá, acordamos amanhã e vamos matando a saudade com calma. Não vai ser num único encontro que vamos dar conta desse vácuo. Você já me contou quase tudo, como se essa noite fosse terminar em dois beijinhos e até daqui a mais trinta anos, meu bem. Temos tempo, e além do mais hoje não é um bom dia para morrer.