I.
Naquele tempo as pessoas
andavam inebriadas por uma estranha onda que parecia ter o poder de arrancá-las
do inferno em que se achavam. Teciam frases como quem dá ração aos porcos.
Fabricavam orações. Idolatravam a palavra da salvação. Acreditavam piamente que
o universo conspiraria em favor da sua fé e que o sucesso lhes seria concedido
na medida do seu merecimento. Não se esmeravam por merecê-lo. Exalavam o bafo
de cavalos ocupados. Trotavam em direção ao breu do céu.
II.
Hoje amanheceu um belo dia
vazio, propício ao consumo de ventos. O trânsito de automóveis não flui com a
mesma normalidade. Ressaca de assassinatos. Nenhum alerta ao corpo de
bombeiros. Nenhum pedido de resgate. A polícia descansa. Um homem sem ninho se
recolhe no vácuo de notícias, reclama um decreto de calamidade, reza para que
amanhã despenque um avião dos céus e entre as vítimas se encontre um vago
parente próximo.
III.
Era
fazenda, moenda, nada pronto, tudo em vias de existir e acontecer. Dormíamos ultimatas e acordávamos primatas, escovávamos
os dentes diante do espelho, graves de filosofia, certos de que um salto
quântico se anunciava para as próximas horas, alguma bomba explodiria e o mundo
nunca mais seria o mesmo. E eis que de repente
aparecem os donos das coisas (onde andavam
escondidos?) delimitando posses, poetas de aluguel, cobradores,
arrivistas, matadores, sonsos, turvando nosso sonho original, sulcando rugas assustadas na face dos infantes, um silêncio
atônito, decepção e medo. Enterramos nossos mortos,
adubamos nossa terra com a matéria viva dos
desesperados. Uns se converteram à palavra de
Deus, outros devotaram-se à família, muitos se empregaram na bolsa de valores.
Nossa alma é uma máquina fria, lúcidos programas, bela porcaria.
Na tela, ao fundo, a sociedade dos infames, dos espaços sorrateiramente avassalados, de um não saber a hora dos incêndios. E esse mau tempo não passa. Eu
é que sou passageiro.
IV.
V.
O que eu queria mesmo de
verdade era ser um cabra normal que acorda de manhã e dorme de noite achando
que a vida segue o rumo que lhe compete, um cara armado de alegria e coragem
suficientes na medida justa, nem mais nem menos para não ficar alegre risonho
demais nem corajoso valente além da conta, muito menos triste contagioso, um
caboclo que não denota surpresa pelo simples fato de desconhecer o porquê do
desalinhavo das coisas, um sujeito que não exige ordem nem progresso, um bicho
que não sente nem mete medo por falta de motivo.
VI.
A
poesia tem passado, é um instrumento antigo, obsoleto, de que já não preciso no
presente. Fica ali, no sótão, exposta ao pó do tempo e a uma nesga de luz que entra
pela greta do telhado. De vez em quando me assalta. Resisto. Parece-me inútil
como instrumento de tocar a vida. Afinal, está em todo lugar, faz parte do meu
cotidiano, toda vez, toda hora. Virou coisa orgânica. Desconfio de sua sedução.
A poesia só faz sentido para mariposas que procuram luz e desejam extasiar-se.
Para os seres que arrepiam os cabelinhos diante da mais banal revelação. Para
os estetas que sonham construir um mundo novo – diferente deste que se nos
dispõe. Não me valerá como auxílio nem conforto, portanto que fique onde jaz
agora. E que não ousem transportar seu lixo reciclável para longe do meu
alcance.
VII.
Melhor considerar o tempo amigo, o tempo a meu
favor, o tempo que abre alas e recicla a alma da matéria, o tempo natural e
incontornável que opera desastres e maravilhas no meu destino.
VIII.
Por aqui
os dias se sucedem, homens consultam mensagens em seus celulares, banqueiros ofertam cartões de
crédito, oficiais de justiça reclamam inadimplências,
agitadores culturais convidam para o lançamento de um livro patrocinado pelas
leis de incentivo, nuvens passam velozes sobre minha cabeça, tudo dentro da
maior normalidade, de vez em quando um atropelo, pivetes malabaristas no
semáforo, um pastor evangélico soprando fogo pelas ventas, um repórter de TV
entrevistando o povo na rua, tiros de escopeta, sirenes de polícia, cães
ladram, crianças choram, Cecília beija minha boca, helicópteros vasculham os
becos da favela
com faróis de milha, depois acalma tudo, noite clara, lua tão esplendorosa
e bela que parece celebrar de véspera um festim de merda e mel, fartura
creditada no que há de ser e bota fé que não passa de amanhã, no mais é tudo
igual àquele fundo esmeraldino na tela de um computador plugado no ócio criativo,
e a situação prossegue, sempre foi assim, assim será, são os costumes, é o
tempo.
IX.
Aconteceu
que por aqueles dias um cometa fulgurante atravessou o céu da minha noite e tal
era a beleza desse astro e tão brilhante a sedução da sua luz que me possuiu
uma vontade irresistível de seguir seu rastro sem querer saber onde me levaria,
na verdade isso não tinha a mínima importância, queria mesmo era orbitar seu
núcleo luminoso, seguir em sua companhia até que esse cometa decidisse
exorbitar da minha vida, minha única certeza: essa hora chegaria. Não podia
durar muito, era feitiço, despertava em mim acessos de imprudência, uma vontade
de largar tudo pra lá, deletar arquivos, inaugurar outras manhãs, novas sinas
de existir. Todo o meu passado revelou-se de repente pobre e sem sentido até o
dia em que esse astro deslumbrante atravessou o céu da minha vida. Perdi a
direção que nunca tive, relaxei a minha mão sempre crispada na borda da canoa,
perdi o senso do naufrágio e me deixei levar sem compostura, coração
desgovernado, nômade por gosto e compulsão, sem pouso nem provimento, sem
projeto e sem função, navegando em vôo cego e venturoso, pura delícia de não
ter onde chegar. Quando ele partiu fiquei outra pessoa. Não me deixou saudade,
só essa mania besta de ficar olhando o céu a imaginar a elipse dos astros na
calma tormentosa das noites do sertão.
X.
Queira
deus nunca me falte o poder que me orienta, o governo que regula a minha vida e
me mantém na boa trilha. Quem sou eu para dar conta de viver subjugado ao
comando de mim mesmo, sem cobrança, sem polícia, órfão de conselho, submisso ao
primitivo dos impulsos? Deus me livre de existir assim sem vigilância, não
sabendo de onde vim nem onde vou, remando só por remar ao léo da correnteza
como se a ética, a moral e os bons costumes já não tivessem disposto claramente
para mim a condição da humildade, do respeito à lei e à ordem, minha reverência
diante da ciência dos iluminados, pois não se pode duvidar que sempre haverá no
concerto da nossa pobre humanidade os mais sábios, os mais dotados, homens que
enxergam muito além dos limites da minha simples comunidade. Em mim só
reconheço um grão de areia no deserto, ínfima partícula na imensidão do
mistério desse mundo, sem poder para guiar a minha sina. Deus não me deu
talento para governar, não levo o menor jeito para a política, não saberia o
que fazer com tanto recurso, tanta riqueza, tanta miséria, tanto problema
difícil de resolver. Isso é coisa para profissional. Por isso mesmo dia de
eleição para mim é sagrado. Acordo ufano, visto minha roupa de domingo, vou às
urnas, coloco na mão de quem sabe a administração do meu destino. E vou dormir
tranqüilo, sabendo que alguém zela por mim. Estou em boas mãos.
XI.
O
primeiro poema foi em pleno vôo. O segundo em calmo pouso sobre a lâmina do
tempo. Vieram outros a desafiar a veia do poeta, exigir do poeta as palavras
certas para traduzir o alumbramento que o poeta sentia pela vida. Eis que o
poeta entrou em prontidão: para tudo tinha um mote, para cada evento ele sacava
do embornal um verso embrulhado em papel de pão. Festejaram o poeta, o poeta
virou artista. Perdeu prumo e compostura. Cismou de versejar em velório,
aniversário. Tanta rima, tanto metro, tanto sestro, tudo se somava ao charme do
poeta, o poeta doido, extravagante, o poeta em seu direito. Bem que aproveitou,
beijou bocas que jamais lhe sorririam se não fosse poeta oficial, deu
entrevista na TV, vendeu livro, ganhou fama, acumulou certo capital, mas não
deu conta. Um belo dia, sem aviso prévio, o poeta desistiu de poetar.
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