segunda-feira, 15 de junho de 2015

O CAOS SOBERANO


I.

Naquele tempo as pessoas andavam inebriadas por uma estranha onda que parecia ter o poder de arrancá-las do inferno em que se achavam. Teciam frases como quem dá ração aos porcos. Fabricavam orações. Idolatravam a palavra da salvação. Acreditavam piamente que o universo conspiraria em favor da sua fé e que o sucesso lhes seria concedido na medida do seu merecimento. Não se esmeravam por merecê-lo. Exalavam o bafo de cavalos ocupados. Trotavam em direção ao breu do céu.

II.

Hoje amanheceu um belo dia vazio, propício ao consumo de ventos. O trânsito de automóveis não flui com a mesma normalidade. Ressaca de assassinatos. Nenhum alerta ao corpo de bombeiros. Nenhum pedido de resgate. A polícia descansa. Um homem sem ninho se recolhe no vácuo de notícias, reclama um decreto de calamidade, reza para que amanhã despenque um avião dos céus e entre as vítimas se encontre um vago parente próximo.


III. 

Era fazenda, moenda, nada pronto, tudo em vias de existir e acontecer. Dormíamos ultimatas e acordávamos primatas, escovávamos os dentes diante do espelho, graves de filosofia, certos de que um salto quântico se anunciava para as próximas horas, alguma bomba explodiria e o mundo nunca mais seria o mesmo. E eis que de repente aparecem os donos das coisas (onde andavam escondidos?) delimitando posses, poetas de aluguel, cobradores, arrivistas, matadores, sonsos, turvando nosso sonho original, sulcando rugas assustadas na face dos infantes, um silêncio atônito, decepção e medo. Enterramos nossos mortos, adubamos nossa terra com a matéria viva dos desesperados. Uns se converteram à palavra de Deus, outros devotaram-se à família, muitos se empregaram na bolsa de valores. Nossa alma é uma máquina fria, lúcidos programas, bela porcaria. Na tela, ao fundo, a sociedade dos infames, dos espaços sorrateiramente avassalados, de um não saber a hora dos incêndios. E esse mau tempo não passa. Eu é que sou passageiro.



IV.
 Acabo de me eleger eu mesmo o meu pior inimigo. É eu que não me deixa ser quem sou. Eu que me vela os horizontes mais sonhados, eu que me culpa por crimes que admito mas dos quais não fui mentor, eu que me guia por caminhos que não quis trilhar, eu que me faz mal e me desorienta, eu que me engana, me seduz e me destina ao inferno da minha vida, eu que me promete e não me cumpre, eu que me acena com aventuras impossíveis, me convida a ceias indigestas, me anuncia prêmios pelos quais eu pago caro sem usufruir um naco de delícia, eu que faz de mim farrapo, que me enche de ilusão, que me decepciona, eu que não sou eu, esse eu estranho que não larga do meu pé, eu imperador a me cobrar tributos que não posso resgatar, tirano a me lembrar pecados que não sou capaz de redimir, eu filho da puta, sem-vergonha, cafajeste, eu mesmo que me habita e me possui. 

V.

O que eu queria mesmo de verdade era ser um cabra normal que acorda de manhã e dorme de noite achando que a vida segue o rumo que lhe compete, um cara armado de alegria e coragem suficientes na medida justa, nem mais nem menos para não ficar alegre risonho demais nem corajoso valente além da conta, muito menos triste contagioso, um caboclo que não denota surpresa pelo simples fato de desconhecer o porquê do desalinhavo das coisas, um sujeito que não exige ordem nem progresso, um bicho que não sente nem mete medo por falta de motivo.
  
VI. 
A poesia tem passado, é um instrumento antigo, obsoleto, de que já não preciso no presente. Fica ali, no sótão, exposta ao pó do tempo e a uma nesga de luz que entra pela greta do telhado. De vez em quando me assalta. Resisto. Parece-me inútil como instrumento de tocar a vida. Afinal, está em todo lugar, faz parte do meu cotidiano, toda vez, toda hora. Virou coisa orgânica. Desconfio de sua sedução. A poesia só faz sentido para mariposas que procuram luz e desejam extasiar-se. Para os seres que arrepiam os cabelinhos diante da mais banal revelação. Para os estetas que sonham construir um mundo novo – diferente deste que se nos dispõe. Não me valerá como auxílio nem conforto, portanto que fique onde jaz agora. E que não ousem transportar seu lixo reciclável para longe do meu alcance.
  
VII.

Melhor considerar o tempo amigo, o tempo a meu favor, o tempo que abre alas e recicla a alma da matéria, o tempo natural e incontornável que opera desastres e maravilhas no meu destino.

VIII.

Por aqui os dias se sucedem, homens consultam mensagens em seus celulares, banqueiros ofertam cartões de crédito, oficiais de justiça reclamam inadimplências, agitadores culturais convidam para o lançamento de um livro patrocinado pelas leis de incentivo, nuvens passam velozes sobre minha cabeça, tudo dentro da maior normalidade, de vez em quando um atropelo, pivetes malabaristas no semáforo, um pastor evangélico soprando fogo pelas ventas, um repórter de TV entrevistando o povo na rua, tiros de escopeta, sirenes de polícia, cães ladram, crianças choram, Cecília beija minha boca, helicópteros vasculham os becos da favela com faróis de milha, depois acalma tudo, noite clara, lua tão esplendorosa e bela que parece celebrar de véspera um festim de merda e mel, fartura creditada no que há de ser e bota fé que não passa de amanhã, no mais é tudo igual àquele fundo esmeraldino na tela de um computador plugado no ócio criativo, e a situação prossegue, sempre foi assim, assim será, são os costumes, é o tempo.


IX.

Aconteceu que por aqueles dias um cometa fulgurante atravessou o céu da minha noite e tal era a beleza desse astro e tão brilhante a sedução da sua luz que me possuiu uma vontade irresistível de seguir seu rastro sem querer saber onde me levaria, na verdade isso não tinha a mínima importância, queria mesmo era orbitar seu núcleo luminoso, seguir em sua companhia até que esse cometa decidisse exorbitar da minha vida, minha única certeza: essa hora chegaria. Não podia durar muito, era feitiço, despertava em mim acessos de imprudência, uma vontade de largar tudo pra lá, deletar arquivos, inaugurar outras manhãs, novas sinas de existir. Todo o meu passado revelou-se de repente pobre e sem sentido até o dia em que esse astro deslumbrante atravessou o céu da minha vida. Perdi a direção que nunca tive, relaxei a minha mão sempre crispada na borda da canoa, perdi o senso do naufrágio e me deixei levar sem compostura, coração desgovernado, nômade por gosto e compulsão, sem pouso nem provimento, sem projeto e sem função, navegando em vôo cego e venturoso, pura delícia de não ter onde chegar. Quando ele partiu fiquei outra pessoa. Não me deixou saudade, só essa mania besta de ficar olhando o céu a imaginar a elipse dos astros na calma tormentosa das noites do sertão.
  
X.
Queira deus nunca me falte o poder que me orienta, o governo que regula a minha vida e me mantém na boa trilha. Quem sou eu para dar conta de viver subjugado ao comando de mim mesmo, sem cobrança, sem polícia, órfão de conselho, submisso ao primitivo dos impulsos? Deus me livre de existir assim sem vigilância, não sabendo de onde vim nem onde vou, remando só por remar ao léo da correnteza como se a ética, a moral e os bons costumes já não tivessem disposto claramente para mim a condição da humildade, do respeito à lei e à ordem, minha reverência diante da ciência dos iluminados, pois não se pode duvidar que sempre haverá no concerto da nossa pobre humanidade os mais sábios, os mais dotados, homens que enxergam muito além dos limites da minha simples comunidade. Em mim só reconheço um grão de areia no deserto, ínfima partícula na imensidão do mistério desse mundo, sem poder para guiar a minha sina. Deus não me deu talento para governar, não levo o menor jeito para a política, não saberia o que fazer com tanto recurso, tanta riqueza, tanta miséria, tanto problema difícil de resolver. Isso é coisa para profissional. Por isso mesmo dia de eleição para mim é sagrado. Acordo ufano, visto minha roupa de domingo, vou às urnas, coloco na mão de quem sabe a administração do meu destino. E vou dormir tranqüilo, sabendo que alguém zela por mim. Estou em boas mãos.
  
XI.

O primeiro poema foi em pleno vôo. O segundo em calmo pouso sobre a lâmina do tempo. Vieram outros a desafiar a veia do poeta, exigir do poeta as palavras certas para traduzir o alumbramento que o poeta sentia pela vida. Eis que o poeta entrou em prontidão: para tudo tinha um mote, para cada evento ele sacava do embornal um verso embrulhado em papel de pão. Festejaram o poeta, o poeta virou artista. Perdeu prumo e compostura. Cismou de versejar em velório, aniversário. Tanta rima, tanto metro, tanto sestro, tudo se somava ao charme do poeta, o poeta doido, extravagante, o poeta em seu direito. Bem que aproveitou, beijou bocas que jamais lhe sorririam se não fosse poeta oficial, deu entrevista na TV, vendeu livro, ganhou fama, acumulou certo capital, mas não deu conta. Um belo dia, sem aviso prévio, o poeta desistiu de poetar.




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