segunda-feira, 15 de junho de 2015

QUASE POEMAS



MÚSICA 

A maravilha dos ritmos eternos,
apurada poesia: eis o que quero.
Nem show, nem chororô de sax,
nem pandeiro, quero o som inteiro
inclusive o mítico silêncio
tilintando vidros e
corcéis
atropelando ventos.





S.O.S.
  
Perdi teu endereço. Bati na porta de ontem e não estavas lá, te busquei na casa do amanhã e só achei teu rastro, liguei no celular, deu fora do ar, preciso te encontrar em algum lugar incerto, nada urgente, é que estou perdido no presente, por favor ativa o chip e me deixa rastrear a tua elipse, milhões de anos-luz me fazem te querer perto de mim.



CONTABILIDADE

Hoje não tenho nada.
Vou juntar dinheiro
Vou juntar coragem
Vou juntar amor.

Um dia gasto tudo de uma vez.




SE EU FOSSE VOCÊ

brigava com ela saía pelado tomava cachaça fazia arruaça pisava na bola entrava de sola cortava o barato sentava o cacete batia na cara cagava na moita falava rasgado rasgava o contrato baixava um decreto cobrava pedágio pulava esse muro virava essa mesa soltava os cachorros armava um banzé soprava a fogueira ficava uma fera tacava pimenta criava um rebu tocava punheta tomava no cu amarrava essa égua fumava maconha mijava no tanque metia a colher cantava de galo trancava com chave roía essa corda fazia pirraça pulava do oitavo tomava mais uma ficava na boa pensava direito botava uma pedra tentava esquecer passava por cima tirava de letra matava no peito jogava pro canto deixava pra lá partia pra outra pegava essa estrada sumia no mapa saía correndo ficava mais calmo pintava esse rosto mudava essa cara passava batom usava colírio não dava bandeira fazia checkup pegava no sério tocava um negócio abria um boteco comprava uma casa plantava batata nadava de costa deitava na cama rolava na fama transava uma ioga gozava essa vida matava essa aula ligava essa trompa tirava essa roupa entrava na dança botava mais fé andava no vácuo voltava pra casa mudava o canal não dava conselho virava esse disco calava essa boca fechava a matraca parava com isso




SOTURNO

Queria ser alegre por um dia.
Gozar um dia inteiro de alegria.

Ao menos por um dia me podia suceder
o claro da alegria
me levar onde eu queria
e não podia.

Pelo menos por um dia a alegria
- ainda que tardia.

Por um dia - quem diria!
eu seria dono da alegria.
Eu com ela, ela comigo
por um dia, só um dia
todo cheio de alegria.

Isso me bastaria.
Sonhar demais, seria?

Nada mais sucederia                                                             
nesse dia. Só alegria.

No outro dia eu voltaria
ao normal de todo dia,
com uma baita saudade da alegria. 

uns

UNS CLARO OUTROS PENUMBRA UNS CACO OUTROS FIAPO UNS FIBRA OUTROS LASCA UNS TECIDO OUTROS PAU UNS VIDRO OUTROS FILÓ UNS OPACO OUTROS TRANSLUZ UNS QUIMERA OUTROS CONCRETO UNS CAOS OUTROS ACASO UNS INTERNO OUTROS EXÍLIO UNS NÓ OUTROS ENLACE UNS PAZ OUTROS REVOLTA UNS ORDEM OUTROS CAOS UNS ENCONTRO OUTROS ADEUS UNS ACHADO OUTROS PERDIDO UNS ALÔ OUTROS ABRAÇO UNS FOGO OUTROS ÁGUA UNS DESTRO OUTROS SINISTRO UNS LOCAL OUTROS ALHURES UNS TERRA OUTROS MAR UNS PEDAÇO OUTROS MIGALHA UNS MIDIA OUTROS ARTE UNS TEMPO OUTROS ESPAÇO UNS FAZER OUTROS PENSAR UNS TESE OUTROS OFÍCIO UNS COMEÇO OUTROS FINITO UNS NUNCA OUTROS TALVEZ UNS CÉU OUTROS ABISMO UNS TUDO OUTROS NADA UNS AMÉM OUTROS PORÉM UNS AGORA OUTROS MEMÓRIA UNS ASSIM OUTROS ASSADO UNS QUERER OUTROS PODER UNS ARDÊNCIA OUTROS SILÊNCIO UNS OUTRO OUTROS UM   
e outros


ARTE EM TRANSE


meu corpo em trânsito pelas ruas da cidade minha imagem gravada na pintura dessa manhã luminosa minha escultura exposta às intempéries gotas de chuva ácida patinando o bronze da minha pele minha sombra projetada na tela da noite insana minha arquitetura em plena restauração minha nudez em cena minha figura inscrita na paisagem meu olhar sondando alguma trilha incerta meu gesto desenhando alterações de rumo ao largo e à deriva dos ancoradouros ânsia de rasgar os mapas me deixar guiar pelas estrelas meu ofício costurando a corrosão do tempo minha trama em transparência minha teia meu tecido minha vida em risco minha arte caminhando para a urgência do nada absoluto onde mora a poesia sem palavras   


SANS PAROLES
 
 
Apenas um canto sem palavras nesta hora vaga.
Voz que não se pronuncia: um sopro.
 
Te perdi pela palavra? Estou perdido.
 
Procuro loucamente um verbo intransitivo,
absoluto,
que depois dele sobrevenha a calma,
e o silêncio.


DESISTÊNCIA

Melhor não tentar consertar as trincas
desse mundo imperfeito.
Tudo já nasce fadado a dar defeito.


GHOST LOVER

Cuidado:
meu desejo te rastreia.
Pura fome de mim mesmo:
vontade de me devorar.


Palavracanto

No canto da palavra
Toda palavra canta
Todo canto é uma mensagem
 quer dizer alguma coisa
ecoa na noite densa
Uma promessa de vida
Uivo de lua cheia
Um desafio de morte
Palavra que tange o tímpano
E impressiona a retina
Toda palavra é canto
Todo canto, uma palavra
Uma risada no vácuo
Quando a noite vira dia
Um ronronar de alegria
Um grito de meter medo
Uma surpresa, um encanto
A palavra no seu canto
Qualquer som se denuncia
E dá notícia do tempo
Tem gosto, tem cor, tem hora
Tem função, tem serventia
Nada existe sem motivo
Pois toda palavra soa
Até as pedras entoam
A frase dos seus arpejos
Tudo grita em partituras
Até o som do silêncio
Sonha com sinfonias
Só uma palavra cala
Como bem disse Cecília
Aquela que me devora
A dura palavra que entala
No inferno da minha boca
E faz de mim um triste
poeta gago.



MOTIVAÇÃO
Pode me ligar, não vou te devorar.
De todo o meu querer sobrou apenas
um farelo, uma migalha de paixão.
Agora é só ternura e compaixão.
Hoje vivo sem qualquer obrigação.
Pode me chamar, não vou te assediar.
Só quero degustar a luz do teu olhar.
Parar de te querer me trouxe a paz.
Me sinto zen, imóvel, calmo,
quase morto.


RUPESTRE

Sonho juntar em mim todas as outras partes
desgarradas de mim,
partículas do meu inteiro particular,
Matéria do meu sangue,
que me nutre, que me cresta,
me dá sede.

Hoje não tenho idade, acho graça de viver.

O tempo inscreve em minha pele tristezas
e alegrias rupestres,  rugas de todas as eras.

A poeira é terra dando adeus.
Mas é do barro que se faz meu sonho:
de esperar a chuva.


GEASA (Livre Tradução)

 Geasa é ou uma injunção ou uma praga ou encantamento rogado em alguém, geralmente por uma bruxa, sábia ou fada, 
e que impede a pessoa, sob pena de terríveis conseqüências, de levar a cabo uma determinada ação ou uma série de ações, 
até que um conjunto de condições específicas tenha sido preenchido. Essas condições estão muitas vezes fora do controle 
da pessoa sobre quem pesa o sortilégio. A geasa é um recurso comum em todas as velhas lendas irlandesas, especialmente 
nas do Red Branch [Ramo Vermelho] e de Fionn e Fianna”.


Ela me convidou a subir no seu barco
e navegar com ela pela noite escura.
Remava firme pelo rio afora e seus olhos refletiam
a luz de um par de velas que alumiava a noite.
Não quis dizer de onde vinha nem aonde ia.
Perguntei onde morava e ela quis me confundir:
apontando para o Oeste disse: Leste.
Concedeu-me três conselhos:
jamais comer duas refeições na mesma mesa,
não passar duas noites sob o mesmo teto,
nem ir para cama duas vezes com a mesma mulher.
Desafiou-me a jogar com ela e ganhou todas.
Sumiu num rastro de luz e me largou na margem.
Deixou comigo o par de velas
e dois remos inúteis.
 

Versão livre sobre poema de Nuala Ní Dhomhnaill (Irlanda do Sul), traduzido por Medbh McGuckian (Irlanda do Norte), in “A tradução na negociação do conflito histórico: sul via norte, o irlandês através do inglês”, Jean Andrews, Tradução de Myriam Ávila, de uma velha lenda celta escrita em idioma gaélico.



DESERTO

É certo que às vezes a sede me assalta.
Não por acaso estudo a arte dos camelos.
Confio na predição dos salmos: nada me faltará. 



ALERTA AOS ANIMAIS BIPOLARES

Nada de perder a compostura.
A lei pede simetria, doido é quem não se ajusta.

Nem pense em perder o prumo,
vestir camisa de força,
muito menos terapia.

Cabeça no lugar, irmão.
Vê se entende a biologia:
tudo se alinha ao seu duplo. 
seu estado é bipolar.

Mas não despreze a gravata,
É ela que te mantém
entre a esquerda e a direita,
no justo caminho zen.  

Ela é o fiel da balança
Mantém o homem ereto
No centro da confusão.



CURRAL D’EL REY


Esta é a cidade que eu amo
                                               e recuso.

A cidade maravilhosa e
                               pervertida.

A cidade que me acolhe e me expulsa
para perto dela.

Esta é a cidade zoneada,
A cidade das cercas,
das trincheiras,
da Contorno: povo pra lá, elite pra cá.
Funcionários no meio.

Esta é a cidade dos homens,
a cidade dos sonhos,
                a cidade possível.

Esta é a cidade de Aarão,
a cidade adventista,
a terra prometida da República.

A cidade confidente,
fuxiqueira,
rezadeira,
e farrista.

Este é o triste horizonte que marcou as retinas
do poeta da pedra e quem sabe fez dele
uma estátua mineral.

O belo horizonte que comportou a modernidade
a ponto de atrair para cá visionários e mercadores
com todos os seus talentos
e suas babas venéreas.

Esta é a minha cidade,
meu horizonte belo e triste
de não mais poder.

Este é o feudo da realeza,
o gueto da burguesia,
o burgo da tropa (sempre)
                               disposta à luta.

Este é a cidade medida e desmedida,
composta e desfigurada,
a cidade que ainda cheira a magnólia
entre vapores de carbono e sulfa.

A cidade que não escolhi
mas que se ofereceu aos meus desígnios
e encaixou-se ao meu destino.

Aqui é onde o Judas perdeu as botas
e eu atolei as minhas.

Esta é a cidade-laboratório
que divertiu os cansados da paulicéia
numa festa pândega que afinal se revelou
pura decepção: buscar o futuro em Minas?
Qual louco sonharia?

Esta é a cidade dos alarmes, das buzinas,
das sirenes - a cidade militar e hospitalar.

Esta é a cidade dos cães educados,
que esperam abrir o semáforo para atravessar na faixa.

Este é a cidade dos quatro cavaleiros do apocalipse.
A cidade dos artistas que vão embora fazer sucesso lá fora.

Esta é a roça grande onde os fazendeiros do interior
plantam rebentos que vão virar advogados,
médicos, engenheiros e, muito frequentemente,
residentes: voltar ao lar paterno para administrar
o café com leite da família.

Esta é a cidade viva que Mucchiut ponderou
com a cidade dos mortos.

Esta é a cidade dos botequins,
das moças bonitas
e das favelas urbanizadas.

A cidade que sonhou Paris
e acordou Macondo.   

Esta é a cidade que me cabe,
e me concede loucos arrebóis.




blue note

Havia promessas de uma eterna vida em movimento

e o que veio era uma vigília tensa, de gesso.

Um passo, salto, no sulco do tempo -

a corda do tempo percutida -

sem sono, sem pausa.

Aquela velha dor que a uns interna,

a outros expatria.

Eu me perguntava: a vida é isso?

Procurava rostos amáveis.

E andava olhando o chão à cata de moedas perdidas.


Ausência

Tudo o que me falta sempre esteve ao meu alcance.
Se eu quisesse era só querer:
estender a mão num lance
e recolher
o trigo que me cabe,
o afeto que se encerra
pronto e acabado.

Mas me consola a morbidez do impossível:
aquele ar superior de quem acaba de engessar a perna
e olha o infinito com tédio.
(ou: aquele papo de que tudo está escrito
para cumprimento dos otários)

O que me mata mesmo é o que
ficou sem trato,
o que sobrou do parto anunciado
e abortado,
pois não era o tempo
de existir
em cena
e ato.

Nesse mundo não se mexe:
o mundo se mexe.
A gente se ajeita.

No ar,
querendo pouso,
enquanto (tudo)
não explode (tudo).


psi

Depois de Freud
e da psicoterapia
não tem escapatória:
cada louco com sua nomia.

Eu, por exemplo, descobri:
sou um neurótico normal,
me tranquiliza o trivial.

Achar, achei, mas não me felicita.

Procurava o Deus total
e, quando muito, encontrei
um deus que caga.



holograma

Daqui deste ponto
de vista o dia
se move, desperta
a noite de dentro

(centro azul de lantejoulas)

                derrama a luz da palavra
                                               na trama
                                               do tempo
                                               das cores.

Primeiras impressões de um destino imaginário:
crepúsculo de outubro tilintando brilhos,
ilusões do círculo concreto,
vibrações, quimeras, arco-íris

A imagem é um fato
(como o jasmim de certas noites)
eclipse dos sólidos na constelação do espaço
e uma nítida revelação:

                os objetos do meio ambiente
                apenas copiam suas sombras.




Debaixo do sol

O dia entra pela fresta e eu sigo imerso na noite insone.



Mercês
Nas vilas cruas
se cozinham cérebros
em banho morno, e
nada concerne:
vaga por ali um nativo estranho
que nas horas plenas quer gritar
não sabe o quê,
apenas quer gritar para agitar
as copas das árvores
i m ó v e i s.


sincera blitz

Tenho por dito e revelado
tudo o que sei de ti
e nunca foi pronunciado.

Por isso tu me estranhas
e eu te trato com tanta intimidade.

No teu caso - e só no teu caso - prefiro o gesto,
toque de mão ligeiro, sonhos de reggae e valsa.

Lanço-te um olhar de puro assombro.
Tudo é palco-máscara.

No nosso caso,
o lixo a reciclar é maior que a matéria a ser inventada.


domingo

meu coração festeja:
tua gargalhada gralha
tua calma
a luz nascente da manhã
a voz de Ana e Marina
- palavra e canto -
tua nervosia
parentes chegando e saindo
e o vácuo da tarde.
meu coração tem pena
das criaturas que não querem aprender
nem ensinar.



Bel

O jeito de Bel andar é uma aula de suavidade.
Ela veste panos leves e sandálias franciscanas
para não perturbar a trilha das formigas
e o tímpano das ratazanas
no subterrâneo das ruas.

Não desfila, nem ostenta.
Apenas se sabe que ela existe
porque ali está,
quase transparente,
no cenário da cidade,
dando banda de tédio
e resignação.

Jóia rara entre a gala dos turistas
que transitam por ali
na trilha dos inconfidentes,
mal enjambrados
e famintos.



Declaração de Amor
a Ana Maria do Céu

Pouco ver-te não é triste.
Pungente é tua ausência
quando a vida dá sinal de vida
e não te tenho ao meu lado.

Onde estavas, meu amor,
quando Maria do Céu me encantou
- e eu só pensava em ti?

Onde andavas, amor da minha vida,
quando Maria Parda me fez chorar
- e me perdi longe de ti?

Foi muito demais para eu sozinho.



extremunção
Parte em paz, século XX, vai:
encara tuas vítimas no limbo temporal,
apresenta-te ao grande Deus com tuas caras,
metade luz, metade trevas.
Contempla a face esquálida da fome e da miséria,
teus legados,
passa em revista o exército dos mutilados,
responde à continência dos feridos,
conta teus mortos, século XX !

E não temas o ardor de tua culpa:
não será mais terrível que a tortura, o degredo,
a prisão de teus dias,
o apocalipse de tua sanha progressora.

Homens crentes te chamaram século das luzes,
e eu concordo.
Em mim ainda lampejam hiroshimas e napalms,
mísseis luminosos sobre o deserto das almas,
cidades frias de neon e pólvora.

Ah, século do progresso!
Anunciaste a cura de teus males
e te despedes envolto em cânceres ocultos,
sorrateiras síndromes de pânico e malignidades
em gigante escala.

Vai, despede,
faz o rito da passagem.
Quem sabe o XXI, teu filho,
prefira Dioniso a Marte?


Insulas
  
Tuas ilhas são paradionisíacas.
Tens o condão de envolver-me em turbilhão.
É isso: uma paz sem sossego.

Os objetos flutuam em tua órbita,
só me resta levitar
em tua companhia.

Contigo o mundo não pára.
No máximo, fica suspenso.

Preciso te ver assim:
séria assim,
malandrinha assim.


Juliana

primeiro encanto: teu cabelo
segundo encanto: teu sorriso
terceiro encanto: teu silêncio
puro encanto: tua palavra

E digo mais:
teu cabelo espiga
teu sorriso puro encanto
teu silêncio observante
tua palavra solunar

Pede mais tua beleza:
teu cabelo semeando vento no meu rosto
teu sorriso me fazendo ser feliz
teu silêncio me ensinando coisas
tua palavra me calando fundo.

E mais não digo,
para não me apaixonar.



Reveillon

Vi nascendo sorrateira
a erva de uma nova tirania
disfarçada em algodão e lenitivos.

Bandida como nunca vi.

Vi a máscara do bem cobrindo faces horrorosas,
risos amarelos onde só cabia o esgar do sofrimento.

Vi os ratos corroendo as rendas.
Vi os homens sublimando a vida.

Vi prefeitos e juízes leiloando votos,
fomentando assassinatos,
convocando o povo ao mutirão da cidadania
e faturando horrores no festim dos democratas.

Vi seres humanos sob o jugo de um poder insaciável,
descarado, inominado, inalcançável pelos tapas da revolta.

Não há mal que sempre dure.
Sem sucesso, fica o sucedido.



de susto, de bala ou vício
para Vadim

Um homem equilibrado.
Um homem que vê uma estrela e diz: estou vendo uma estrela,
logo estou vivendo.
Um homem que ainda não morreu,
que diz bom dia para saber que ainda não morreu e se aniquila
diante do dia bom e claro e belo e grande.

Um homem sem rosto pousado em calma sobre uma colcha de retalhos.
Um homem em retalhos, olhos de mosca multifacetados,
cego-sensitivo.
Homem nenhum - nenhuma figura - apenas manchas na retina.

Um homem que poderia fazer milagres mas não pode.
Um homem lispector encalhado numa palavra-pedra,
perdendo anos e anos de vida por isso.

Um homem que ouve e lê e vê todas as palavras em todos os lugares:
um homem em busca de revelações.

Um cavalo pastando.
Um bode de óculos aparando a grama do campo de golfe,
quem diria!

Um homem esperando na janela como uma virgem do interior:
olhando a lua apaixonado e louco.


Tesouro

Sei muito bem
que te apresentas
para mim
com tuas semijóias
e guardas no cofre
as gemas de valor
legítimo.

Não faz mal.
Estamos nesse palco
e é assim que se compõe
a cena.

Eu de cá já te mostrei
tudo o que posso.
Não sei porque tu desconfias
que mais tenho
e não te dou.  



Vesperal
para Ni

Longos dias e noites eu ouvi estarrecida
maravilhas e misérias eloquentes.

Meu semblante congelava o riso,
tecia músculos dormentes
entre o espelho e a espada.

Longas horas eu gastei me devorando de mistério e culpa,
bolinando o feminino rejeitado em líricas lembranças
e promessas pérfidas.

À minha frente, o macho em plena onipotência,
fragilíssimo,
quebrável em mil cacos de demência santa.

Longa estrada percorri sedenta de mim mesma,
estranha de mim mesma,
nula e plena.

A sabedoria, a calma, o movimento, onde andavam?
e por que me abandonavam nessa estrada triste?

Eu, que era doce, me amarguei e fui tentada
pelas artes da esperteza.
Dentro de mim talvez morasse há muito tempo
um duende mórbido.

Foi quando coloquei de molho minhas barbas,
tripulei embarcações do coletivo, inconsciente,
revirei baús de antigos mapas.

Novos rumos apontaram para a ilha do farol
em pleno mar mediterrâneo, eu náufraga.

De repente, brotaram palavras duras,
um jorro incontrolável de memoriais palavras
querendo nascer a qualquer custo,
a forceps, marreta, dinamite, qualquer jeito
que me libertasse para sempre deste jugo insano
e projetasse em minha vida outra vez, de novo,
o sentimento do mundo, vasto mundo.



ALECRIM
(para Alex)

Há os que acham tudo divino.
E os que enxergam a mão do demo
em toda parte.
Eu convivo com deus e o diabo
na terra do sol.
Acho tudo maravilha,
enxofres e jasmins.







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