quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

PARIS, SETEMBRO

Façonable e Eau de Toilette Kenzo, formato folha, para Celinha, encontráveis a bom preço na Rue de Rivoli. Uma caneta para Fernanda, direto das prateleiras do Auchon. Óculos Vuanet baby para Pedro e André. Jaqueta de couro ou jeans hard rock para Júlia. Chás para Mauro e Marlete. Cravatte bleu para o Sr. Cornélio. Boinas do mercado das pulgas para colegas clássicos. Ana e Mama em aberto, para escolher na emoção da hora. Livros. CDRoms. Nada demais para um viajante pobre, avesso a shoppings e bagagens. Um estimulante roteiro de viagem via compras? Pode não ser.
Aeroporto Charles de Gaulle, amigos na recepção, a margem de Paris igual a qualquer parte do mundo. Talvez eu me sentisse em outro mundo se um táxi tivesse me deixado em plena Champs Elisées e não aqui em Bagnolet, fronteira entre o velho e o novo, um bairro assim como a Cidade Nova, calmo, limpo, tranquilo. Nuvens no céu azul de Paris, igualzinho às nuvens do céu de Belo Horizonte. Aqui estou. Vou dormir, corrigir a ressaca do fuso, ou devo visitar a Tour Eiffel imediatamente?
Clima de quermesse do interior, longa fila de turistas e nativos em diástole dominical, crianças, balões e pipocas. Agitação de yashicas, voyeurs em pânico e o meu primeiro deslumbramento com a paisagem urbana que conheço dos filmes americanos (não sei de filme francês que tenha revelado a vista deste magnífico cartão postal no ângulo merecido; conheci franceses que nunca se elevaram para admirar a cidade do alto da torre, como velhos copacabanenses que também nunca subiram ao pão de açúcar e são capazes de narrar a visitantes cada detalhe do que se vê lá de cima). Emoção de ouvir pela primeira vez a língua gaulesa escandida à compreensão dos estrangeiros, premier étage, deuxième étage, misturada a exclamações de todas as línguas do mundo. Tudo muito familiar. A mídia nos integra. Só os olhos vêm novidades. Enfim, Paris aos meus pés.
Emoção contida. Primeira noite, desagradável sensação de que nada mudou e o mundo continua a girar como sempre. O impacto de mergulhar, logo no primeiro dia, no cotidiano de uma família francesa, suas regras, seus temores, projetos de futuro, asfixia, a previdência, o que será de nós quando o inverno chegar, a compreensão da fábula da cigarra e da formiga, os rigores da economia popular, absolutamente estranhos ao improviso dos trópicos, à informalidade das colônias.

Ier Jour. Simone me guia na manhã do primeiro dia. Desconfio que, com quarenta anos de livro e cinema, conheço mais Paris do que ela, que mora aqui há 8 anos. Tem medo, ainda sente o peso dos primeiros anos de discriminação, uma brasileirinha metida a besta que ousou casar-se com um francês.
Subimos e descemos várias estações do metro. Em Père Lachèse, a primeira parada que me agrada muito, com gosto de pesquisa sociológica: agência de empregos. Quadros com ofertas de trabalho, quase todas na indústria do turismo. Fila de 9 pessoas pacientes. À frente, um cidadão egresso de tratamento mental (iria descobrir, depois, que isso aqui é terra de muitos loucos). O diálogo se desenvolve com uma certa rispidez, mas sem mover um músculo. Ele quer saber da atendente como fica sua situação de trabalho depois que tiver alta do internamento. Ela responde que ele deve voltar à agência quando tiver alta – e aí, sim, vamos ver o que podemos fazer. Ele insiste em conseguir uma posição mais definida desde já. Cada fala dura mais ou menos 5 minutos e cada um escuta calmamente o que o outro tem a dizer, até o ponto final. Mesmo sem concordar com uma palavra do outro. A construção é lógica, cuidadosa, cartesiana. Nenhuma solução à vista, a coisa já dura meia hora, ninguém da fila reclama pela demora, a atendente chama a supervisora e passa o abacaxi para ela, o debate continua, interminável e deve ter atravessado a tarde. Descubro que, por aqui, a palavra tem valor.
À tarde saio sozinho. Je suis à Paris e me transformo logo num rato de metrô, me seduz o crossing das linhas, a rapidez dos deslocamentos, a sisudez dos franceses que não se olham nos olhos, apenas lêem ou fitam o teto, de vez em quando arriscam um olhar pelo reflexo do vidro da janela.
Árabes, africanos, orientais, latinos, mistura de raças altaneiras que por aqui andam de cabeça erguida, vestidas de muitas cores. Subo as escadas do metrô e broto na Île de la Cité. Magnífico conjunto arquitetônico do quatrocento, o Sena redivivo, águas claras, dizem que por aqui até se pesca – e vejo pescadores às margens do rio verde em pleno outono. Descubro que Paris é cinza. Gratifico-me, cumprimento a mim mesmo por estar aqui, por ter tido a coragem de sair do lugar e vagar sozinho por estas terras estranhas, por essas ruas antigas cheias de gente parecida comigo, falando uma língua familiar que Padre Tachard e Mademoiselle Evangeline me ensinaram nos bancos de escola em Mariana e Barbacena.
E ando, caminho até sentir dor nas canelas, respiro fundo o ar de Paris, sento-me à mesa de um bistrô e capricho no pedido: “une bière pression, s'il vous plaît” para garantir o sucesso da minha primeira emissão em língua francesa. Acendo um cigarro. Os museus e o metrô são os único lugares onde não se pode fumar na França. No mais, pita-se desbragadamente. Não entrei num único restaurante ou bar onde não fosse permitido fumar, nem sequer aquelas tradicionais áreas para não-fumantes. Escorrego ao pedir la compte, que a garçonete corrige para l’addition. De qualquer maneira, vitória: consegui tomar os primeiros chopes sem problema.
Na segunda parada etílica, crio coragem e boto as mangas de fora: "je voudrais boire un bon vin rouge. Est-ce-que vous pouvez me conseiller?". E o garçon entende tudo, de primeira. Sou do mundo, esta cidade me pertence.

2ème Jour. Sinto-me em casa, metido a besta. Logo pela manhã, bela visita ao Centro Georges Pompidou, uma exposição de Fernand Leger, montada em ordem cronológica – o que deixa visível o quanto ele foi piorando com a idade. Suas primeiras criações são infinitamente melhores do que as dos últimos anos. Em meio aos murais maravilhosos, pintados em grandes formatos, fixo-me em uma verdadeira obra-prima: bela e jovem visitante italiana - sei pelo guia eletrônico - portadora daquela beleza clássica que combina com os museus e os ambientes de arte. Decido fazer o trajeto da exposição ao seu lado, quase ombro a ombro, ela não se importa, talvez nem me veja, às vezes me esbarra ao passar de um quadro a outro, não trocamos uma palavra mas tive a sensação de que tínhamos combinado aquele encontro, passamos uma manhã inteira em mútua e silenciosa companhia.
Mais que o arsenal da arte moderna, impressiona a arquitetura do Pompidou, suas armações metálicas, escadas e imensos canos de ar e água à vista do visitante, isto sim, uma coisa verdadeiramente moderna e provocante no contexto de uma ambientação medieval no entorno urbano. Difícil destacar alguma coisa da exposição permanente, que é variadíssima, mas registro aqui – por afinidade antiga – os móbiles de Calder. E os homens diante da TV, uns 15 sisudos bonecos de terno preto, assistindo a um vídeo experimental, sentados em solenes cadeiras com altos espaldares, apenas uma cadeira vazia, na qual, gaia e incontrolavelmente, me sentei, compondo com os homens-bonecos um quadro tristíssimo que só a Simone e um outro visitante divertido com a cena puderam avaliar.
E o Louvre? Deixo para outro dia.
Na manhã seguinte, uma caminhada aleatória me conduz ao Panthéon. Mágica pura: o monumento que mais me impressionou com a sua cúpula magnífica e o seu interior soleníssimo. Fiquei literalmente encantado, abobado, ainda mais que naqueles dias oscilava pelo espaço o pêndulo de Foucault, fixado no alto da abóbada interior, descrevendo uma eterna parábola que atravessava todo o centro zenitalmente iluminado do Panthéon. Fiquei ali, horas, e quando saí foi para tomar umas cervejas num bistrô belga bem perto e ficar apreciando suas formas externas. Nunca a palavra monumental foi tão precisa.
Depois das cervejas de marcas variadíssimas, claras, escuras, amargas (se não me engano o nome da casa é Gueuze) a descoberta dos boulevards mais famosos, o Saint-Germain, o Saint-Michel, o Montparnasse, com suas edificações de 4 andares debruçados sobre pequenas praças bucólicas de interior, vontade de morar num deles, mesmo entendendo que devem ser caríssimos, os telhados de pedra reluzente, as janelas com venezianas basculadas, o azul desmaiado e o tom de terra das pinturas. Calma e paz.
A seguir, emoções indescritíveis: ir entrando pelas grandes portas da Sorbonne adentro sem ser convidado, atravessando seus corredores como um intruso prestes a ser surpreendido em flagrante delito, entrando em suas salas de aula, recolhendo folhetos com informações sobre cursos, apreciando o movimento frenético dos estudantes na temporada de inscrições e descambando, finalmente, no grande pátio onde predominam as estátuas de Victor Hugo e Louis de Pasteur. Pausa para respirar, sentado numa balaustrada do pátio, respirando fundo o ar da intelectualidade mundial, embebendo-me no ambiente famoso dos escritores e artistas que povoaram minhas imaginações de leitor. Coisa de macaca de auditório, fã terceiromundista deslumbrado, mas como foi linda aquela manhã!
Daí, um calmo desfile pelo bairro universitário, a academia de medicina, as livrarias, o rosto dos estudantes preocupados com os rumos que a vida vai tomando à nossa revelia, como nós éramos no nosso período universitário em Belo Horizonte, igualzinho. Nova parada gastroetílica, que ninguém é de ferro, desta vez diante do hotel Claude Bernard e do bistrô Máscaras, pertinho da universidade René Descartes, um bar na esquina da rua Jean de Beaulais, para experimentar, un apéritif kir – nada recomendável – une omelette complete avec salade verte (já tinha vivido tantas emoções que não suportaria um desgaste com a comunicação da língua) e só então pude tomar ar nos pulmões, recuperar-me da imensa aventura que é descobrir uma terra estranha por sua própria conta e risco, sem mapa e sem guia. Confortado, segui em lenta caminhada pelo bairro universitário – e fugi às léguas de um botequim brasileiro, na rua Bertholet, com bandeira verde-amarela e tudo.
Dia seguinte, sempre a pergunta perturbadora: e o Louvre? Vou adiando, não morro de amores pela maior atração de Paris. Antes, o Musée d'Orsay. Ainda não passamos pelo Louvre mas já posso adiantar que a visita ao museu d'Orsay é melhor programa, em todos os sentidos.
Sem o burburinho do Louvre, você acessa uma vastíssima e maravilhosa coleção de arte exposta com um critério enciclopédico que abarca a criação do mundo em todos os tempos: esculturas magníficas, pinturas de todos os séculos e, acima de todas as maravilhas, no terceiro pavimento, uma farta reunião dos impressionistas, de cair o queixo e deixar-se enlevar: quase tudo de Monet, para mim o maior de todos, Degas, Van Gogh, Manet, Toulouse-Lautrec (deste, chama a atenção uma série de desenhos e aquarelas de rara beleza, desconhecidas para mim, expostas à meia luz em uma sala especial) e Renoir, que me seduziu (melhor dizer "impressionou") profundamente.
A surpresa de deparar com um grande Picasso numa virada de parede. Estão todos lá no d'Orsay. Todos os grandes mestres da pintura e da escultura de todos os tempos. Meu primeiro encontro direto com Camille e Rodin. Um dia ainda quero reencontrar e identificar o autor de umas esculturazinhas do tamanho de um polegar, em feitio caricatural, retratando personagens da cena política francesa dos séculos XVffl e XIX, de uma perfeição assombrosa e humor veramente picante. Ficam no primeiro piso, num salão elevado logo à esquerda de quem entra, protegidas por vitrines de vidro. À saída do d'0rsay, o prazer de explicar a um turista quarentão, em francês, onde encontrar uma boa refeição, em local agradável – para, só depois do esforço, descobrir que se tratava de um brasileiro.
Bom, aí sim, depois destas primeiras incursões a nível superior, eu já estava em condições de me permitir uma vidinha mais normal, isto é, ir ao supermercado Auchon e comprar umas iguarias, devidamente auxiliado por minha hospedeira. E vieram os jantares domésticos. Pernas de carneiro ao forno, mouton aux fines herbes, com miolo bem vermelho, mariscos ao vinho, tudo muito palatável – e a descoberta intragável de que, aqui, cada um paga o estritamente seu e as contas são rigorosamente acertadas. No arranjo da geladeira, cada hóspede é dono do que comprou e que ninguém lance mão da mercadoria do outro – nenhum senso comunista, um horror individualista, ao ponto de me ter sido negado pelo dono da casa um café após a refeição, pelo ridículo motivo de eu não ter comprado o "meu" café! Eu, ein Rosa? Lá em casa cafezinho sempre foi honra da casa.

4ème jour. Enfim, as tulherias, place de la Concorde, les champs elisées, l’arc de triomphe. Tudo a pé, com um sapato novo perturbando a beleza do lugar. A sofisticação dos cafés, a Paris financeira, o brilho de pedra falsa – bela pedra falsa. Calçadões maravilhosos, espaçosos (quando não invadidos pelas mesas dos bistrôs). Comecei a ficar enjoado daquilo tudo, daquela vidinha de turista andarilho, vontade de ficar em casa vendo televisão ou mudar o rumo. Aí, um casal de hóspedes brasileiros da Simone, recém-chegado de um giro de carro pelo interior da França, sugeriu um passeio a Giverny, terra onde viveu Monet, onde estão seus famosos jardins e seu museu, no comecinho da Normandie, a pouco mais de l hora de Paris. Beleza, partimos amanhã.
Nada como um pouco de confusão metropolitana para equilibrar a pressão do turista. Saída de Paris para Givemy, trânsito intenso nas grandes rodovias, velocidade vagarosa mas fluxo constante, um pesado rebanho de automóveis e caminhões movendo-se em direção à linha do horizonte. Até aliviar numa via secundária, mais calma, rumo à Normandia. Como se estivéssemos rodando pelas estradas do sul de Minas numa fresca manhã de quinta-feira. Giverny uma linda vila florida, lembra os condomínios residenciais plantados às margens de nossas grandes cidades, apenas turistas nas ruas e uma ou outra mercearia com bons vinhos e queijos. Casas bucólicas, campestres, a maioria sem movimento de habitantes, parece que usadas apenas em fins-de-semana. Calçamento de pedras, a inefável igrejinha – e o Museu de Monet, a casa onde viveu, seus jardins conservados, onde não se pode fumar nem fazer piqueniques. Como já fossem 2 da tarde, a fome nos assaltasse e nos tentasse um convidativo banco de madeira à beira do lago, ameaçamos desembrulhar uma matula que Simone havia preparado e fomos alertados por uma zeladora: aqui não!
Chinoiseries na casa de Monet, muitos objetos e desenhos chineses, tema que o fascinou numa fase da vida. E reproduções de seus quadros, paisagens esmaecidas no fog impressionista, imensas nuvens espatuladas, muitas flores e jardins, marinhas e barcos em composições pontilhadas. Como sempre, à saída de todos os museus franceses, uma grande loja de souvenirs, verdadeiro shopping de recuerdos variadíssimos, posters com reprodução de pinturas, miniaturas de esculturas, livros em capa dura, calendários, balangandãs, camisetas, roupas e quetais, onde comprei um lindo broche que Dona Teresinha usa até hoje nas festas de gala. Na mesma rua, a casa dos pintores impressionistas americanos, que fizeram com Monet uma ponte cultural do novo ao velho mundo.
E para completar (vocês se cansarão de ouvir falar nisso) o prazer de comprar de uma simpática senhora francesa, em uma mercearia tosca, que dá porta para a rua, um magnífico bordeaux compartilhado por nós no bico da garrafa - com pães, queijos e patês que eu vou contar pra vocês.

Quelque jour. De volta a Paris, le Palais de Justice, Saint-Chapelle, Notre Dame e seus vitrais espetaculares (conforme a estação, escolha a hora de melhor incidência luminosa). Na Conciergerie, as prisões da revolução francesa em simplória representação de grandes bonecos de cera encarcerados em suas celas, textos dramáticos sobre os horrores da revolução, guilhotinas e justiçamentos sumários – uma aventura bem ao gosto dos franceses, histórias que eles gostam de contar como vovó adorava contar casos de assombração no borralho do fogão da fazenda. Sempre intercalando andanças à beira do Sena e dos bares.
E – voilá! – le Louvre. A cerimónia de preparação da visita durou mais do que a própria visita. Delírio de japoneses clicando suas máquinas a torto e à direita, burburinho de ginasianos em frenesi, grupos de turistas com guias esgoelando em todas as línguas. A cristaleira de Miterrand barrando a visão de entorno da bela praça de entrada. No interior do hall, a pirâmide já funciona melhor, criando um ambiente de mágica transparência. Muito ruído e confusão, condicionando um ritmo frenético: corri à Victoire de Samothrace – imensa no alto da escadaria – derivei para os salões onde reina La Gioconda, protegida por vidros à prova de vandalismo e perdigotos, cercada de admiradores que costumam ali passar a tarde inteira, boquiabertos. Um olhar rápido sobre múmias egípcias e cerâmicas etruscas, o deslumbramento com a opulência dos salões de pintura - e saí correndo para o primeiro bistrô nas proximidades, prometendo voltar com mais calma. Hora de partir para a Itália.

Paris-Roma. O medo de errar no embarque na estação de Lyon – para onde fui de metrô –desfaz-se rapidamente na profusão de informações visuais e anúncios de alto-falante. Expectativa imensa de conhecer os famosos trens europeus. Cuidado para não perder o passaporte e não deixar-se assaltar! Minha amiga tinha conseguido me deixar em pânico de tanto me prevenir contra estes dois eventos. Perder o passaporte seria uma confusão dos diabos e os italianos são mãos-leves, costumam limpar os turistas sem que eles percebam um gesto. Não vi um italiano ladrão e nem corri o risco de perder o passaporte, talvez porque o conferisse no bolso do paletó umas 20 vezes por dia. Já tinha feito la resérvation de place, dois dias antes – providência indispensável para quem viaja com o Europass. Chegar na hora e embarcar sem reserva, como prometem as agências de viagem, é ficar na mão de calango, dependendo de assento nas cabines. Na itália, corresponde à prennotazione posti, a reserva antecipada de lugar nos trens.
Embarco às 8 da noite num TGV ligeiríssimo, trem 219, voiture 110, place 105, numa cabine de 6 poltronas (3 frente a 3) e – surpresa! – só eu na cabine, pelo menos até que o dia amanhecesse, já em território italiano, e os trabalhadores da Toscana invadissem o trem rumo às fábricas e escritórios nas cidades vizinhas, sempre trajetos curtos, de 30/40 minutos, como um trem de subúrbio. Cabine muito confortável, leitura nervosa enquanto o trem não parte, o tempo de descobrir os comutadores de luz e ar – e o comissário me pede o bilhete de reserva e o passaporte, sumiu com meu passaporte pelos corredores, deixando-me preocupado com os alertas da Simone. Tudo pronto, vamos lá. A velocidade me espanta, o último trem que peguei era uma maria-fumaça da linha Oeste de Minas, que não passava dos 40 quilómetros. Aqui, começamos a 140 km/hora e devemos ter chegado aos 200 km no meio da madrugada, imagino que atravessando os túneis dos alpes. As vezes, não resistia e abria as janelas do corredor e era sempre advertido pelo comissário assustado, que não compreendia para que um passageiro podia querer tomar na cara o ar frio dos Alpes, em plena madrugada. Confiante no carro-restaurante (carrozza-ristorante na Itália), fui sem matula e sem água. Sinais de civilização superior: os cozinheiros e garçons estavam em greve, restaurante fechado, não dava para descer nas paradas em Dijon, Torino e outras, quase morri de fome até Roma, estômago roncando por um queijo e um bom vinho, implorei por um chá, um biscoito – nada!

Roma, sexta-feira. Descemos na estação Ostiense - e não em Roma Termini, mais central, às 11:30 da manhã (15 horas de viagem sem pasto). Corri para a lanchonete da pobre estação, comi um sanduíche rápido, armei-me de cartões telefónicos e bilhetes de metrô, vaguei pela estação deserta em busca de um câmbio e perdi-me nos labirintos para encontrar a plataforma do metrô. Decepção. Em comparação com o de Paris, o metrô de Roma é sujo, mal conservado e mal arejado, apenas duas linhas cruzadas, calor dos diabos sem ventilação, acabei descendo na Piazza d'Spagna suando corno tampa de chaleira. Era só o começo da confusão e do suadouro. Tinha indicação do Hotel San Silvestre perto da praça d'Spagna, vicino a Fontana di Trevi, que atravessei quase sem olhar, fixado num banho restaurador, depois voltaria para apreciar com calma o movimento da praça. Tinha decorado uma frase de guia: "ci sono stanze? A resposta invariável: não há vagas, "sono completi". Era a tarde de uma movimentadíssima sexta-feira, acontecia ali um encontro internacional das indústrias, o trânsito de Roma piradíssimo, carros e pedestres disputando espaço a unha nas vielas estreitas - e eu vagando hotel após hotel, sempre com a mesma resposta "sono completi" e alguma boa vontade de me indicar uma alternativa próxima. Duas horas de procura, vã e exaustiva. Todos lotados.
Entrei em desespero, suava em bicas com a mochila nas costas, parei um táxi na praça, depois de rodopiar feito pião nas redondezas e, num italiano manco, comandei um nome que me veio de estalo na memória: toca para Campo dei Fiori! Não sabia onde era, perto de onde, se no centro ou na periferia de Roma, mas foi a saída que encontrei. Era logo ali perto, não fossem as voltas intermináveis impostas pelo tráfego insano. O táxi me deixou numa ruela perto de um hotel de aparência externa deplorável, rebocos soltando, entrei confiante e ouvi a mesma resposta: lotado. Pensei comigo, vou ter que dormir na estação de trem, pavor de lembrar a cara zangada de um “carabinieri” cutucando o cacetete num senhor que cochilava num banco da estação de Roma: aqui não se pode dormir. Garganta apertada, entrei em mais dois albergues e, no terceiro, Albergo Sole, finalmente! Temos o último quarto vago! Quase chorei de alegria e alívio, mesmo ouvindo pela primeira vez o som da lira italiana: "cento cinquanta mille lira"- custei a me refazer do susto. Achei que estava sendo assaltado pelos mãos-leves italianos. Fiz as contas e vi que, na verdade, aquilo equivalia a 80 dólares. Um bom quarto, com um pequeno mas confortável banheiro, um banho inesquecível, um breve repouso e a lição para sempre aprendida: não vá a Roma sem reservar hotel. Em nenhuma outra cidade tive problema para encontrar acomodação, mas em Roma, atenção!
Depois dessa aventura (fome no trem e andanças em busca de pouso) era o que faltava: uma gripe com tosse brava, fruto dos frios ares alpinos nos pulmões desprevenidos. Antes de procurar o vinho italiano, fui obrigado a sair em busca de uma farmácia – coisa rara de encontrar na Europa, ao contrário do Brasil, que tem uma em cada esquina – e teci um longo e confuso discurso ao balconista, antes de descobrir que a palavra que eu procurava era “schiaroppo”, isso mesmo, um xarope pra tosse!
Acalmado, caí na noite romana. Dois quarteirões e estava na alegre e animada Piazza Famese, rodeada de restaurantes com mesas na calçada e ornada de um belíssimo palco dos hare krishna. Lembrei-me do Gino Calvi: i muglieri italiani! As mulheres romanas – e digo romanas porque não vi iguais em Florença e Veneza, por onde andei – parecem saídas de capas de revista, belas morenas, altaneiras, de porte esguio, olhos profundos – e parece exagero classificar assim generalizadamente, mas foi o que vi muito e sempre, em todos os lugares, encantado. Roupas de feitio clássico, tailleurs, blasers, calças compridas com vinco, negando ao voyeur a beleza adivinhada das pernas – só turistas usam minissaias por aqui.
Porém, o que encanta os olhos não conforta o ventre - e vamos ao repasto gastronômico, que ainda me ressinto do jejum da fatídica viagem de ontem. Nada de invenções criativas. Primeira noite na Itália, que venha a pizza romana e, como sempre, um bom vino rosso com acqua minerale. A pizza de massa finíssima, deliciosa, enorme, que os romanos costumam enrolar no prato – os italianos ou eu? – como panqueca recheada de queijos, tomate, manjerona e, de acordo com o pedido, salaminhos muito palatáveis. Aos poucos, fui descobrindo que uma boa refeição italiana se compõe de muitos pratos: primo piatto – pequena porção de massa leve, caneloni ou torteloni ou tagliarini; o secondo piatto – uma carne fatiada ao molho ou ao forno, um peixe ou marisco; dopo uma salada verde e sobremesa. Sequência para deixar bobo e feliz o praticante disposto a matar o tempo e fazer o quilo olhando a vida passar.
Tantos amigos de amigos a procurar, trouxe uma lista de referências em Paris, em Roma, em Veneza, meio parentes, meio amigos - não ligo pra ninguém. Aliviado por decidir dessa maneira, sigo minha via solitária, descobrindo o que se me apresenta, por minha conta risco. A diferença é que cada descoberta sem aviso prévio é uma verdadeira descoberta, um susto bom. Viajar sem guia oficial - eis o trato. Os krishna cantam e desfilam pela praça Farnese, ricamente paramentados, seguidos de alegres turistas neófitos atraídos como ratos de hammelin, batucando mantras que nos perseguirão noite adentro, até o sono na cama do hotel, um sono pesado, entrecortado de tosses violentas, digno de um dia de surpresas, ressacas e grandes descobrimentos.

Sábado em Roma. Depois de um café na padaria da esquina, saio andando sem saber onde estou. Quebro uma esquina, outra, pego uma avenida e vou no cheiro. Sabe onde chego sem querer? No Vaticano, praça São Pedro. Fazer o quê? Museu do Vaticano, outro encanto. É preciso insistir em que hoje é sábado, turistas às pencas, na maioria italianos mesmo. Primeiro, um giro superficial pela catedral de São Pedro, com grandes áreas em restauração, onde encontro, sentado num banco olhando afrescos, o meu tio Hélio Grossi, falecido há 18 anos, que não me reconhece, apesar de constrangido ao se ver mirado por mim com tanta insistência e assombro. E tomo o rumo do Museu. Caminhamos pelos suntuosos salões do Vaticano ombro a ombro, lotação esgotada, flashes e arroubos de admiração, alegria incontida, bandos de maritacas, alaridos e assombros. Durante o longo trajeto do museu, sempre a placa com a terra prometida: Capela Sistina, onde todos querem chegar afinal, mas que não chega nunca. Estratégia do roteirista ou suma teológica? Se querem chegar ao paraíso, primeiro têm que passar pela penitência purgatória: andar quilômetros de labirintos e salões apreciando obras menos famosas mas igualmente importantes. Tem gente que tenta driblar o roteiro – como eu tentei – atalhar por becos e frestas, mas nos deparamos sempre com uma passagem barrada, e voltamos à estrada original. Juro, vi turistas perguntando em todas as línguas: "a capela sistina, vai chegar ou não vai?", ouvi pessoas reclamando da armadilha, protestando contra a procissão redentora, promessa cansativamente adiada e não cumprida. Quando, finalmente, adentramos a capela sistina, era um espetáculo triste: turistas esgotados, boquiabertos, numa sala em que não cabia nem mais uma mosca, pescoços tensamente erguidos, olhos fixos no juízo final de Michellangelo, forçando espaços com braços e ombros, num pré-orgasmo a que se seguiria, necessariamente, uma inevitável brochada pelo cansaço e pela demora em encontrar o prazer. Depois do clímax, saio correndo, buscando ar, desço e subo escadas em ritmo nervoso, pergunto pela saída (dove è la uscita?) e me vejo de repente na praça São Pedro, como bicho liberto da insuportável prisão dos museus.
E só então reparo que a fachada da Igreja de São Pedro está sendo restaurada. E que, na praça, reina um clima de jubileu, barraquinhas de água de coco, pirulitos e doces, imagens e santinhos – não muito diferente das festanças profanas de Congonhas e Mercês do Pomba. Aí não resisto, 11 horas e meia no outono de Roma, ligo para meu pai, direto de um telefone público. São 7 horas e meia na primavera de Barbacena, Nelito já caiu na rua, certamente depois de comprar pão e coar o café da manhã. Não consigo falar da minha emoção, que tento transmitir para minha irmã notívaga que atende incomodada e tresnoitada.
E agora, a tarde e a noite de sábado para conhecer Roma. Saio do Vaticano tomado novamente pelo espírito andarilho, vago olhando prédios e praças, de repente estou em plena Piazza Navuona, com a estátua de Victorio Emanuelle, uma belíssima praça retangular, monumental – esta palavra inevitável no turismo europeu, tudo aqui é monumental. Os conjuntos arquitetônicos históricos a que estamos acostumados no Brasil – pelourinho, centro do Rio de Janeiro, Olinda, São Luís, Ouro Preto, Tiradentes – são literalmente miniaturas das edificações das grandes capitais europeias. É só maginar a escala ouropretana duplicada ou triplicada em todos as suas dimensões: altura, largura, profundidade, espessura das paredes, número de portas e janelas. Ressalvadas as condições de estilo e época, podemos deduzir, forçando a mão, que uma seria a maquete da outra, ou, em outros termos: da riqueza que aqui se produziu restou apenas o suficiente para construir presépios que tentaram reproduzir, em escala menor, a magnificência do barroco e do renascentismo europeus.
Em Roma, exagerei no aleatório. Talvez pelo atropelo da chegada e a cansativa caça de alberques, não comprei guias nem tentei informar-me sobre datas, marcos e eventos, vinguei-me gazeteando as aulas de história e as imposições do roteiro turístico, nem o Coloseo me dispus a visitar. Andei, andei e fui descobrindo vistas poderosas das quais nem sei o nome, nem quis saber. Visitei escavações de catacumbas perto da praça Navuona, subi as escadarias de um palácio magnífico onde noivos paramentados comemoravam núpcias, vislumbrei cenas felinianas da cidade eterna, as indefectíveis lambretas e a juventude urbana ainda cheirando a James Dean, passei no hotel para um banho e voltei à Praça Farnese no começo da noite (escurecendo às 8 e meia) para uma refeição completa – com tutti piati a que eu tinha direito depois da primeira jornada. Três horas depois, saí meio briaco de tanto vinho e agachei-me em frente ao palco dos hare krishna, ao lado de um turco bêbado (por afinidade?) que desafiava a retórica do mestre careca que tinha cara e fala malandras de gigolô carioca. Falava o mestre, enquanto chupava restos de comida entre os dentes, sobre a espiritualidade e o encontro com a essência de nós mesmos, quando o meu amigo bêbado o interrompeu com altos berros e gestos, mais ou menos com estas palavras: "mas que espírito que nada, olha a minha perna (guarda mia gamba!) ferida, olha a minha pobreza, olha a minha matéria fedida!".
Solidarizei-me de imediato com o protestante, bati palmas e chamei atenção para ele: "ascolta!". O mestre ficou enrolado, meio puto, só sabia dizer: "la domanda, qual e la domanda!" – e o tumulto só foi sossegar quando uma doce discípula de sandálias e batas coloridas se assentou no chão, com sua filhinha, ao lado do bêbado, começou a conversar em voz baixa com ele e o acalmou num longo e paciente diálogo. O domingo da manhã seguinte foi de novas andanças sem rumo, até as 11 horas, quando peguei o trem para Firenze. Um dia ainda quero conhecer Roma.

Florença, tarde de domingo. Agradabilíssima viagem rumo à Itália meridional, desta vez à luz do dia e em companhia de pessoas calmas na cabine, a não ser pelo incidente antes do trem partir, quando uma baixinha americana, não conseguindo alcançar o bagageiro, subiu de sapato na poltrona e levou um esporro de uma ruiva alemã: "é assim que você faz na sua casa?" Pude ver, ao longo da estrada de ferro quase sempre acompanhando o leito das rodovias, as pedreiras de mármore, vastos campos verdes plantados, castelos e vinhedos, pequenas vilas italianas que me lembravam o interior do Brasil, sempre para os lados do sul.
Às 4 da tarde chegamos à estação de Florença. Vacinado, acalmei-me antes de sair espavorido em busca de hotel, peguei informações e recebi de um italiano – Paolo – o folder de um pouso ali perto, saindo da estação à esquerda, seguindo a via Nazionale, por 100 dólares. No 5° quarteirão à direita, quando viro a esquina da rua do hotel (XXVII Aprile) poucas casas antes de chegar ao destino recomendado por Paolo, resolvo checar a placa "Picadilly Hotel", primo piano de um velho casarão fiorentino, n° 18. Sou atendido por um italiano e duas senhoras sorridentes, com um jeito muito familiar, uma delas acariciando um poodle no colo. Pedem 50 dólares (oitenta e cinco mil liras) por um quarto com banho e me levam a conhecê-lo. Maravilha! Belo pouso, quarto amplo com cama de casal, TV e grandes janelas de vidro e veneziana que davam para um deleitável pomar de romãs, sala de banhos espaçosa, decido: agora sim, começam minhas férias na Itália, depois da correria e do susto de Roma. Fico por aqui uma semana.
E, fim de tarde, caio na rua. Quatro quarteirões e estou na Duomo, babando diante da catedral estupenda (desconfio que vão faltar adjetivos neste narrativa). Escolho a mesa de um restaurante de esquina em posição estratégica, de onde se pode admirar demoradamente a arquitetura e os motivos decorativos rebuscados da catedral – só para descobrir que aquele lugar privilegiadíssimo é também caríssimo, trono de ouro para turistas desavisados e deslumbrados como eu. Não faz mal. Primeiro dia em Florença, extrapolo a verba do dia, gasto mais do que posso. Também já tinha ganho 50 dólares na diferença do hotel. Dali sigo para a margem do Arno, que beleza estes grandes rios que atravessam essas cidades... o Sena em Paris, o Tibre em Roma, o Arno em Firenze e Piza, o Tamisa em Londres que ainda não vi e não verei nesta viagem. Vou até ponte vecchio, bato perna com a delícia de quem encontrou seu porto seguro, estou tranquilo e feliz. Vou dormir, não sem antes comer uma deliciosa bisteca com um tonel de birra no balcão de um pub, a caminho do hotel. E aí ligo a TV, aprecio o noticiário, me delicio com os âncoras, os inúmeros talkshows, a brabeza dos depoimentos populares, muita mesa redonda com análise de psicólogas – e as hebes que assolam a TV italiana.
O mundo mudou. Acordo tarde, refeito, em pleno gozo de férias. Capricho na escolha da roupa, sapatilhas confortáveis, calças largas cheias de bolsos, camisa salmão de malha bradley mangas compridas, temperatura agradável de 20 graus. Cafelati na mercearia da esquina, com brioches. Se pedir apenas café, vem uma meia xicarazinha de cafezinho, um dedo de achocolatado tipo capuccino, uma bosta.
Passo pela igreja de San Lorenzzo, onde se anuncia um concerto de flautas para quarta-feira, entrada franca, agenda obrigatória. E caio num largo onde acontece uma exposição de Marc Chagal, a 1'annunziata, nome do centro cultural num prédio de construção horizontal, mergulho num porão muito bem decorado toscamente – e com apenas outros seis visitantes, passo a manhã luminosa em companhia de Chagall, que eu pouco conhecia, maravilhoso.
Novos giros pela ponte vecchio e seus antiquários, joalheiros de fama mundial, cruzo para o outro lado do Arno, a rive gauche, passando por Santa Croce e suas pinturas em terracota, pelo palazzo Pitti e vou enveredando por ruelas fora do circuito turístico, até desembocar, já no final da tarde, numa pracinha simpática, num botequim decente frequentado pelo povo do lugar, chamado "la dolce vita", zona boêmia livre de turistas, belas moças nativas, exposição de pinturas geniais do para mim desconhecido argentino Schirapa, um reconfortante conhaque Martell apaziguado por chopes geladíssimos, gente boa a atenciosa, primeiras conversas em italiano, uma língua mais difícil do que eu imaginava, acabava recorrendo, muitas vezes, ao inglês e ao francês para expressar o que queria, numa mistura que, afinal, funcionou durante toda a viagem. Em termos. Tem hora que dá uma vontade danada de entrar numa roda que ri, entender tudo o que se diz e rir junto. O meu conhecimento destes idiomas dá para o fisiológico, para resolver as necessidades básicas. A língua nos separa. Na maioria das vezes, il faut rester a l’elementaire. E, consolo dos viajantes aflitos, ao menos sobra tempo para observar e olhar a vida estrangeira, seus costumes e manias, acontecendo à nossa frente.
Saí de lá bêbado, tarde da noite, assustado com a escuridão das ruas, tentando acertar o caminho de volta que finalmente acabou se revelando depois de muitas voltas e atalhos por caminhos lúgubres, quintais e terrenos baldios, uma aventura absolutamente irresponsável em terra estranha se não fosse protegida pelo deus dos ébrios. Trôpego e cansado, no quarto do hotel, dormi impressionado com uma reportagem da RAI sobre o efeito das linhas de alta tensão sobre o aumento da leucemia em crianças. E divertido com o comercial de um papel higiénico que tinha como slogan "la morbidezza aveludada" – só no dia seguinte iria saber, consultando o Michaelis, que morbidezza queria dizer "maciez". Vá entender o italiano! Minhas poucas lições de latim não foram suficientes para atravessar o rubicão. Café da manhã é colazione, acordar é svegliare, macedonia é salada de fruta, saída é uscita! Pode? Té manhã.

2° dia em Firenze. Hora de ficar esperto e parar de gastar os tubos nos restaurantes. Descubro, então – ecco! – as mercearias e suas tentações. Queijos e salaminhos variados, vinhos, pães, sucos, começo a abastecer meu quarto de hotel destas maravilhas a preços baratíssimos – menos da metade do que se cobra nos restaurantes – sem falar no prazer e no conforto de chegar em casa de madrugada, armar a mesa da ceia e repassar as emoções do dia degustando um excelente chianti da toscana com um bom camembert e pães de centeio crocante. O primeiro destes repastos que se repetiriam todas as noites em Firenze foi regado também a más notícias na TV: um horrendo terremoto em Assisi, com vítimas humanas e perdas irreparáveis do património histórico e artístico desta cidade localizada no centro geográfico da Itália. A emoção dos depoimentos populares o choro sincero de cidadãos em todas as regiões da Itália – e a nítida impressão de que se lamentava mais o prejuízo cultural do que propriamente as perdas humanas.
Com a cesta básica garantida em casa, ganho tempo para vagar livre e despreocupado, penso até em conferir um jogo da Fiorentina mas desisto no meio do caminho, cooptado por um botequim onde entrei em busca de um conhaque para esquentar os peitos e acabar de curar a gripe renitente. No balcão, resolvi testar o bar-man: "Jack Daniels, please". O cara, tipo belga com um topete moicano pintado de azul, entusiasmou-se em inglês, confundindo o milho de Tenessee com o bourbon irlandês: "Hooo! Its a good irish whisky!" e foi logo botando dois copos sobre o balcão, um pra mim outro pra ele, ofereceu-me uma mesa – e por ali ficamos até anoitecer o sábado, quando não resisti e disparei uma ligação do telefone público ali ao lado da mesa para meu irmão Sandro em Barbacena, logicamente "a debito di destinatario", fazendo rir o belga e os vizinhos de mesa pelo palavrório embrulhado por uns 8 Jack, misturando italiano e francês e português e mais algumas línguas até então inexistentes. Depois dessa, ainda tentei encontrar o David de Michelangelo na noite de Firenze, mas ele perdeu-se nas brumas desse porre monumental e acabei, não sei como, parando na 21 Aprile, onde me aguardava um banho quente, uma cama macia e o pomar de romãs.

Pisa. Desta vez não cuido da reserva, tenho noção da escala de horários e vou direto à estação, tomo o trem para Pisa e me sento numa poltrona vaga, sem passar pelo guichê. Como se trata de um trajeto de pouco mais de l hora, nenhum problema, apresento apenas o passe ao comissário e estamos entendidos. Eis-me em Pisa, dominado pela imagem da torre inclinada. Dou-me conta de como os ícones turísticos são capazes de diminuir a importância de uma cidade. Saio da estação, sigo em linha reta até o Arno, atravesso a ponte, bato à porta da Pensione Helvetia, à Rua DonGaetano, 31 e, surpresa! é hora do almoço, a pensão está fechada. A um quarteirão abaixo, deparo-me com o Hotel Victoria, onde me hospedo. Esplêndida edificação do setecento, imagino. Medida de economia: escolho um amplo quarto apenas com pia e bidê, por 75 mil liras, com direito a ver o Arno por uma nesga da janela do 3° andar. Banho na doccia publica, chuveiro coletivo no corredor, decentíssimo, água quente, espelhos, cabides.
E saio atrás da torre inclinada, que acabo descobrindo ao acaso, andando à toa, no rastro dos turistas. Na verdade, o local é admirável, menos pela torre, mais pelo conjunto que domina o largo cenário da praça. A catedral, o Camposanto Monumentale, antigo cemitério destruído por bombardeios na 2a guerra, em plena faina de restauração, muita gente trabalhando na recuperação de afrescos, muitos cacos de esculturas espalhadas pelo piso, em áreas devidamente isoladas por cordões e avisos. Ao lado, o Museo di Sinopie expõe grandes painéis com estudos e rabiscos projetazioni, disegni preparatori) dos murais e afrescos que estão sendo recuperados no camposanto, todos de dimensões gigantescas. Na mesma praça, um museu de arte com peças magníficas, a maioria de tiragem sacra, de onde pude ter uma visão inédita da torre de Pisa surgindo a menos de 20 metros sob os arcos românicos do corredor externo do museu, devidamente registrada em minhas retinas, já que nesta viagem renunciei decididamente ao esporte do turismo fotográfico, farto, ridículo e irritante.
À noite, indicaram-me a Spagheteria dei Borgo, na via Casa Dipinto, dica que passo à frente com muito gosto. Abri a sessão com uma insalata di mare, inigualável, conchas de mariscos semi-abertas ao vapor de vinho branco e ervas de bom cheiro, em grande quantidade, regadas ao vinho da casa. Guloso, pedi depois o spagheti al Borgo sem consultar o garçon e paguei o preço da petulância: era espaguete, sim, porém com o mesmo molho de mariscos que eu já havia devorado na entrada – e com muita pimenta do reino. Desconfio que foi essa comilança de frutos do mar que fez aparecer na minha vida uma coisa desgraçável, que já vinha crescendo por dentro sem ter dado notícia até aquela hora: a gota, por cristalização do urato nas articulações. Dias depois, de volta a Paris, uma dor chatíssima no pé foi atribuída erradamente ao sapato novo. Só no Brasil é que a coisa brotaria pra valer, interrompendo a glutonaria irresponsável a que me dediquei com muito prazer pela vida toda. Adeus ostras e mariscos, adeus feijoadas e leitõezinhos assados, adeus picanhas, lombinhos e torresmos, adeus bacalhoadas e vinhos tintos tão amáveis e restauradores. Hoje, para dedicar-me a esses prazeres perigosos, sou obrigado a fazer um tratamento preparatório, uma semana antes da festa. Colchicina, Alopurinol, Tristezas.

Luca. À la recherche. Na manhã seguinte, pego um ônibus suburbano na praça da estação e dou uma esticada até Luca, terra de meus bisavós que, não sei porque, saíram daqui no começo do século e enfiaram-se no miolo da zona da mata, região de Mercês e Cipotânea, talvez atraídos pela promessa de desenvolvimento do pólo em torno de Juiz de Fora, a Manchester Mineira. Ou talvez porque queriam esconder-se mesmo na mata, bem longe da tormenta da unificação italiana, ou da guerra da Abissínia.
O gosto de uma viagem rodoviária pelo interior, belas estradas estreitas, paisagem montanhosa verdejante salpicada de pequenos castelos, vilas muito simpáticas, paradas catajecas como em qualquer cidadezinha do interiorzão do Brasil. E Luca, uma encantadora vila que, se eu soubesse tão bela, me teria retido por uma semana. Uma beleza mesmo, quase um modelo de composição renascentista, tudo muito conservado e restaurado em cores vivas e alegres, um clima delicioso de província calma e tranquila, toda cercada por muros, com arredores que não se pode deixar de visitar, como Bagni di Luca, sofisticada estância de águas minerais e Viareggio, no dizer de um taxista local una piccola Copacabana.
Mas a volta estava programada para aquele dia mesmo. Foi o tempo de pegar um táxi com um italiano casado com brasileira, para conhecer Ponte a Moriano, verdadeiro berço de meus antepassados, a 20 minutos de Luca, descer na pracinha, atravessar um pequeno regato, andar até a pitoresca estação de trem, perguntar pela família Grossi a duas pessoas que não tinham notícia (nessuno Grossi qui) e retornar a Pisa no final da tarde, com um ar melancólico e a cabeça nas nuvens.

Luca, Pisa, Firenze, Venecia, urgente. Aí, a calma dos últimos dias esvaiu-se de novo, inaugurando uma nova maratona que começou muito mal. De volta ao Hotel Victoria, em Pisa, sou informado de que só tinha feito reserva por um dia e, tendo saído cedo (para Luca) sem avisar à portaria, eles tinham tomado a liberdade de retirar minha bagagem do quarto para cedê-lo a um hóspede que tinha reserva para aquele dia. Esbravejei diante de uma recepcionista irritantemente impassível pedindo desculpas clássicas, espumei em italiano, bufei em portunhol, fiz uma cena na portaria abrindo ostensivamente a minha bagagem, à vista dos hóspedes, para conferir se não tinham roubado nada – acabei pagando a conta e saí pisando duro, direto à estação, rumo de volta a Firenze. Pernoite em Firenze e saída rápida para Veneza, na manhã do dia seguinte.

Veneza. Tarde ensolarada de domingo. Puro encanto logo à saída da estação de Santa Lucia, quando já se avista o grande canal com seus vaporetos e gôndolas. Pra variar, saio à galega procurando albergue, mochila nas costas, apreciando o movimento das ruas. Parece dia de quermesse paroquial. Como única orientação, uma dica do "Guide du Routard", publicação excelente para andarilhos e mochileiros, num tom satírico que entra até em detalhes sobre o bom-humor dos hospedeiros. Ele sugere a região de Canareggio, saindo da estação à esquerda. Valeu a dica: um lugar encantador, bem velho, com fachadas mal conservadas, sem polimento, com as manchas visíveis do tempo. Bairro boêmio, festeiro, noite animada, boa escolha. Muitos albergues no caminho, vou perguntando sobre vagas e ouvindo a mesma cantilena de Roma: sono completi, não há vagas.
Depois de vagar sem pressa de olho no cenário da estonteante Veneza, chego a um beco com seta e placa indicativa na esquina: Albergo Silva. Entro e sou muito bem recebido por um senhor gordinho e careca, que me confirma a vaga e me confunde na sequência. Pega um mapa e rabisca: siga esta rua principal, passa a primeira ponte, passa a segunda ponte, passa a terceira ponte, a quarta – e procure o número 3211, é lá. Pode deixar paga a diária, toma aqui a chave. Sinto-me embrulhado. Mas o hotel não é aqui? - Sim, é aqui, mas temos outros quartos independentes. Este apartamento é de dois quartos, que compartilham um mesmo banheiro no meio dos dois. Um já está alugado, o outro é seu.
Decido: não vou dar uma de caipira desconfiado, OK, toma lá o dinheiro, dê cá a chave, obrigado. E tomo rumo, preocupadíssimo. Na rua indicada, a numeração saltava de 3150 para 3250. E cadê o número 3211 ? Já ia admitindo o conto do vigário quando descubro que, entrando por uma daquelas ruelas típicas de Veneza, onde mal dá para se abrir os dois braços, a numeração prossegue à medida em que você vai se enfiando pelos becos por trás da rua principal – 3182 / 3194 / 3208 ...e cá estou à frente de um prédio de quatro pisos, fachada muito antiga, porta de alta segurança com tetrachave. Abro e me surpreendo com o interior moderníssimo, reformado, cheiro de tinta nova, muito limpo. Subo dois andares, nova porta com duas chaves de segurança, um corredor com banheiro e dois quartos laterais. Outra porta e, finalmente, um lugar para encostar a mochila e cair na vida. Quarto confortável com janelas estreitas que dão para o campanário de uma igreja ao lado (Veneza toca sinos o dia inteiro) e a curiosidade de saber quem está hospedado no outro quarto, uma pessoa de quem verei apenas os pentelhos na pia do banheiro comum, pentelhos sem caráter, não sei se de homem ou de mulher. Nossos horários não combinavam, quando um tchum no colchão, o outro tchan no cenário.
Veneza pira o turista pelo urbanismo exuberante e absolutamente imprevisível. Tinha tentado imaginar a cidade, antes de chegar lá, com base em filmes, fotografias e histórias. Nada conferiu. Tudo surpreende pelo nunca visto. Parece delírio: prédios mergulhados na água dos canais, com os primeiros pisos abandonados ao alagamento pela subida do nível das águas, gente tirando barcos da garagem para ir ao trabalho, à feira ou ao cinema, tráfego intenso de ônibus, gôndolas e barcos de transporte e passeio, tudo embarcado sobre as águas. Compro, por 8 mil liras, um passe para usar o vaporeto (barco-lotação) durante 24 horas, para qualquer destino – il biglieto jornaliero. A sucursal do Albergo Silva fica pertinho da fondamenta Cá Doro, embarco entusiasmado, quase babando. No grande canal, prédios magníficos, com lindas pontes de travessia como a de Trialto. Passo por cinco ou seis estações, desço na praça de São Marcos, a praça dos pombos e dos noivos, com suas orquestras populares vinculadas às casas de pasto espalhadas na imensa arena da praça, disputando o gosto dos turistas: tangos, clássicos, óperas e até canções napolitanas a que os venezianos resistem com ufanismo.
Veneza é mesmo romântica, sinto falta de Ana e, por um instante, lamento não ter podido trazê-la. É preciso dizer que, numa viagem como esta, costuma nos assaltar a vontade de ter por perto pessoas de quem gostamos. Pensei sempre – e muito – em meus chegados. Às vezes chegava a identificar seus rostos em meio à multidão de turistas. Mas resisti bravamente ao banzo e jamais me arrependi por ter optado pela carreira solo. Viajar sozinho tem prazeres indescritíveis – e o maior deles é estar absolutamente disponível para ver, ouvir, observar e entender o que nos parece estrangeiro. Em grupos de amigos e tribos familiares isto é impossível porque estamos a todo momento banalizando as impressões de viagem com nossos vícios tribais. Incluímos na bagagem os códigos do cotidiano e nos consolamos mutuamente repetindo nossas gírias particulares. Acabamos por não ver o que merece ser visto.
Daí, é embarcar de novo, descer em qualquer fondamenta e perder-se nos intermináveis labirintos e mágicas ruelas de Veneza. Sim, é possível caminhar por aqui em terra firme, desde que se lancem fora mapas e guias, porque, depois de três ou quatro quebradas pelas curvas dos becos estreitos, perdemos completamente a orientação geográfica e não temos a menor ideia de onde estamos. Atravessamos pontes sem conta, seguimos por beiradas e escadarias, atravessamos túneis e galerias, deliciamo-nos com as roupas coloridas e arranjos florais pendurados nas varandas e janelas, esperamos para ver a gôndola passar com românticos e ridículos turistas de riso amarelo e óculos escuros. De repente, você atravessa um sottoportego (passagem em arco sob as casas) e se assusta por achar-se num beco escuro e soturno, sem alma viva, absolutamente silencioso, arrisca mais uns passos e depara com um largo animado e festivo, cheio de gente e movimento. As grossas paredes de Veneza conferem m isolamento acústico que acaba sendo uma das marcas mais nesquecíveis e surpreendentes no cenário da cidade.
O caminho de volta quem nos ensina são as fondamentas, as plataformas de embarcação. É pegar qualquer vaporeto, ter tempo para ficar girando, fazer algumas baldeações e continuar navegando até identificar algum ponto reconhecível, que qualquer cidadão veneziano vai confirmar com prazer. O circular n° l, por exemplo, percorre toda Veneza e vai até a ilha de Murano, meca dos cristais. Não se esqueça de gravar na retina alguns pontos de referência notáveis, mas notáveis mesmo, porque os motivos arquitetônicos se repetem com frequência, as mesmas janelas venezianas encimadas por arcos e pinhas de formato bizantino, pequenos canais cortados por pontes absolutamente idênticas, a mesma iluminação recortando sombras e perfis expressionistas, de repente um largo iluminado que você pensava já ter visto e descobre que está a quilômetros de distância daquele. Se possível, espere a noite cair para conhecer uma outra Veneza mergulhada em reflexos luminosos à flor dágua e – se tiver a sorte que tenho – presenciar o que já se pressentia desde cedo: um acidente espetacular em que um vaporeto atropela e emborca uma gôndola de cheia de turistas, correria geral, desespero de senhores e senhoras americanas gritando por socorro e tentando escapar do afogamento, lançamento rápido de bóias, chegada rapidíssima das lanchas de salvamento com potentes holofotes, pronto atendimento médico e finalmente, para alívio da plateia sufocada, a retirada dos assustados turistas sem maiores gravidades.

Fim da grana, retorno urgente a Paris. Dez dias na Itália, 100 dólares por dia. Se depender de gente como eu, o turismo europeu está fodido. Acabaram-se os dólares, cuidadosamente guardados no famigerado cinto sempre amarrado à cintura, por dentro da calça – e administrados com rigor de contabilista. Tinha deixado 500 dólares em Paris para os últimos giros e as providências de retorno ao Brasil. Para falar a verdade, estava feliz de voltar a Paris, apesar de ter amado a Itália. A cidade dá sempre a sensação de que alguma coisa ficou faltando, algum lugar que não deu para conhecer, algum bistrô não descoberto, um show ou peça teatral imperdível. Ainda tinha 5 dias, os cinco derradeiros dias para tirar a diferença. Mas já dava para perceber que, mesmo depois de l ano em Paris, a mesma sensação me assaltaria: ainda há muito por ver.
Parto da estação de Veneza às 20:05 de sábado. Tinha feito reserva dias antes e, perguntado se desejaria uma "couchette" sem acréscimo de preço, embarquei literalmente na sedução e aceitei a oferta. Afinal, cairia muito bem uma viagem de volta remoendo as impressões de Veneza numa cama confortável. Dancei bonito. Levei um susto quando entrei numa cabine do mesmo tamanho daquela que vinha ocupando com seis poltronas, esta porém com 6 beliches, três frente a três. Entre um leito e outro, mal dava para erguer a cabeça. Se a mão pendia no cochilo, caía na cara do passageiro de baixo. O corredor entre beliches dava para passar uma pessoa magra andando de lado. E a bagagem tinha que ser acomodada num canto da cama mesmo. Todos os seis lugares ocupados. Viajantes deitados sem sapatos. Vidros fechados. Se quisesse sentar, não tinha jeito, obrigatório viajar deitado. Um horror. Pra piorar, minutos antes do embarque subiu ao trem um casal em lua de mel com toneladas de bagagem, o marido xingando esbaforido o consumismo da mulher, enquanto carregava malas e malas sob a calma coordenação da patroa: "Cuidado, esta tem vidros de Murano... Não deixa tombar aquela caixa". E tinham conseguido reserva em cabines separadas: ela na minha cabine, ele na do lado. Dirigiu-se a mim, que estava no corredor tentando harmonizar a promessa de uma viagem torturante. Queria trocar de lugar, para ficar ao lado da esposa. Reaji como um caipira, em péssimo inglês gaguejante: nada disso, daqui não saio, já me acomodei, sorry... Ele me olhou de um jeito tão suplicante, suando em bicas e preocupado em abandonar a jovem esposa com estranhos na cabine ao lado, que mudei de ideia na hora. Não custava nada. Fizemos a troca e fui para a outra cabine, igualzinha àquela que eu descrevi agora mesmo.
Damos a partida e tento me encaixar no buraco reservado à minha pessoa. Reviro daqui, mexo dali, sufoco, tusso e, com 30 minutos de viagem, decido passar a noite no vagão restaurante, abandonando a bagagem sobre o beliche, seja o que deus quiser. Opção brilhante, pelo menos até as 2 horas da matina, 5 garrafas de vinho depois, cochilando sobre a mesa. De qualquer modo, melhor do que aquela toca. assamos por Isele de Trequele, Brig, Sion e Lausanne, na Suíça e, acho ue já em território francês, Clarens, Vallorbe, Dole, todas anunciadas pelos alto-falantes das estações.

Último tango. Et voilá Paris encore! Manhã de domingo cedinho, não quero acordar minha amiga e resolvo fazer um tour de metrô até que o sol apareça de verdade. Só que me perco, primeira e única vez que me acontece, desço numa estação errada, vou para oeste quando queria ir para Bagnolet, tenho que fazer o trajeto e passar por quase todas as cores do mapa das linhas, subir e descer em várias estações, com mochila nas costas, resolvo desembarcar na Place de La Concorde, respirar à tona e admirar de novo aquele conjunto que ainda não tinha visto num domingo. Aí, sim, ligo para Simone e, como ela está com hóspedes, arranjou-me uma vaga na casa de Ana e René, logo no quarteirão abaixo, um casal simpaticíssimo, com uma filhinha risonha, Lia. Ele ator de teatro, de perna engessada, lendo e tomando aulas de acordeon o dia inteiro. Reservaram-me o quarto do casal, cheio de livros, todos os Brecht e Stanislavski, literatura francesa e muita poesia. Deitei e rolei até onde consegui acessar o francês.
Fui cuidadoso em meus hábitos noturnos, para não incomodar a família, ali em cima podia fumar de janela aberta, passar a noite lendo e escrevendo, me senti melhor do que na casa da Simone e Didier, sempre muito azafamados, em eterna correria com os filhos e com o tempo da vida deles mesmos. René e Ana corrigiram a minha má impressão da vida familiar francesa. Generosos, amigáveis, deixavam mesa posta com lanche, música, arte e calma circulando na casa, apesar de saber que também eles estavam com problemas de trabalho e subsistência. Queriam porque queriam adotar urna criança no Brasil. Numa de minhas saídas noturnas, Ana disse a René: donnez lui la clé de securité – e ele respondeu: il ne faut pas, não precisa, vivemos num bairro tranquilo – e bastou esta fala do ator para que eu me aventurasse até mais tarde pelas ruas de Paris, sem medo de perder o último metrô ou ser assaltado por algum maluco.
E aconteceu um caso engraçado. Mostrei a René um livro que havia comprado num se num sebo de Roma, uma comédia de 1912, de autor francês, vertida para o italiano. Tinha começado a ler e estava me deliciando, queria apenas que ele, como homem de teatro, visse e comentasse. Aí, de novo, levantou-se um abismo entre a minha e a língua dele. Entendeu que estava ganhando um presente, olhou a capa, gostou do que viu, apertou o livro contra o peito, curvou-se como um japonês e exaltava: "Merci, merci beaucoup, superbe!". Não teve jeito, ficou com o livro, devo ter feito uma cara de bobo mas consenti, mesmo tendo projetado trabalhar sua tradução no Brasil, já que tinha gostado muito das páginas iniciais. Não lembro o nome do autor, nem o título, fiquei bloqueado com o evento desastroso.

Guia de Paris. Em casa de Simone, hóspedes ilustres: três irmãs balzaqueanas, filhas de família fazendeira de Patos de Minas, marinheiras de muitas viagens, completamente direferentes uma da outra: a mais velha molequíssima, a do meio sizudíssima e mal-humorada, a mais jovem de nariz empinado, empetecada. Dedicadíssimas às compras, parecem que vieram aqui para isso, percebo que estão muito preocupadas em circular sem guia e se perder em Paris, perguntam-me se não posso guiá-las. A proposta me parece interessante e, pretensioso, topo na hora. Oferecem-me 50 dólares por dia. Está ótimo. Armei-me de guias e livros, fiz um estudo preliminar na noite anterior e eis-me em Paris guiando três distintas senhoras compradeiras. Lojas e Louvre, eis o programa. Gostei muito, foi divertidíssimo acompanhar as escolhas aflitas, os gritinhos de estupefação diante dos óculos e dos casacos de pele no l'Opera de Garnier, encher sacolas e mais sacolas com os maravilhosos tecidos de Montmartre, perto do Sacré-Coeur, nas ruas de Rochechouart e Lafayette, nas perfumarias da Rue de Rivoli e na loja do Louvre. Fui um guia exemplar, paciente, só não tinha a menor ideia da história daquelas ruas, daqueles locais, apenas guiava minhas clientes de metrô em metrô, que o metrô era o seu verdadeiro pavor, e a minha delícia. À flor da terra alcalmavam-se voltavam a empolgar-se.
No segundo dia, depois de uma maratona das boas, já final de tarde, consegui convencê-las de que precisava ficar na cidade, abandonei-as na última estação antes de chegar a Bagnolet, liguei para Simone recepcioná-las, sentei num bistrô e comecei a gastar o meu salário de guia. Quando olho para o outro lado da rua, através dos vidros, vejo a placa: Théatre de la Porte San Martin. Hoje. "Lês Cotelettes", une pièce de Bertrand Blier dirigida por Bernard Murat. Até aí tudo bem, não conhecia ninguém. Mas o cartaz destacava ainda: com PHILIPPE NOIRET, Claudine Closter, Micha Bayard e Michel Bouquet. Philippe Noiret! O craque de Cinema Paradiso, A Comilança, O carteiro e o Poeta e tantas obras do melhor cinema contemporâneo! O espetáculo estava anunciado para as 9 da noite, eram 7, será que consigo um ingresso? Decidi ficar bebendo ali até abrir a bilheteria, corri lá, consegui um lugarzinho no terceiro andar das galerias, emocionei-me ao ver Philippe ao vivo ali à minha frente, ou pelo menos a sua careca que era o que eu mais conseguia enxergar lá das alturas em que me encontrava, duplas alturas – a das galerias e a dos conhaques que tinha tomado antes. E entendi que ainda tenho que estudar muito francês para conseguir traduzir diálogos de teatro. Não teria entendido quase nada, não fosse uma portuguesa sentada ao meu lado, que me socorria de vez em quando.

Les derniers jours. Foram tranquilos, vagantes, com a delícia de repetir roteiros que tinham me encantado na primeira etapa da viagem e a surpresa de uma tarde no Musée Rodin e Claudel, jardins paradisíacos, clima ameno, uma bela refeição sob árvores, algumas fotos para japonesinhas solitárias, últimas compras, flores para Ana, René, Simone e Didier, volta mais calma ao Louvre, despedidas, freeshop no aeroporto – os indefectíveis chás, champagnes, vinhos e patês. Novamente uma viagem apertada no lotação da AirFrance. E de novo o meu Brasil, que tinha mudado muito nestes 25 dias.



Sávio Grossi
Outubro 1997

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