BLUE NOTE
Havia promessas de uma eterna vida em movimento
e o que veio era uma vigília tensa, de gesso.
Um passo, salto, no sulco do tempo
- a corda do tempo percutida -
sem sono, sem pausa.
Aquela velha dor que a uns interna,
a outros expatria.
Eu me perguntava: a vida é isso?
Procurava rostos amáveis.
E andava olhando o chão à cata de moedas perdidas.
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PSI
Depois de Freud
e da psicoterapia
não tem escapatória:
cada louco com sua nomia.
Eu, por exemplo, descobri:
sou um neurótico normal,
me tranquiliza o trivial.
Achar eu achei,
mas não me felicita.
Procurava o Deus total
e, quando muito,
encontrei um deus que caga.
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VINHO DERRAMADO
Não, não foi preciso uma gota de sangue.
Tudo aconteceu no império da agonia.
Durante o sono dos cristais.
Invadiu minhas veias.
Vazou por meus poros.
Restaram amizades fúnebres.
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SANS PAROLES
Preciso abrir mão das palavras.
Elas pesam demais. Exigem demais de mim.
Desconfio que me traem.
Preciso libertar-me do peso das palavras,
substituí-las por gritos e sussurros
que falem melhor de mim.
As palavras fogem da verdade,
afundam-me no lodo do abismo.
O que procuro nelas?
Decifrar o que a mim não se revela nunca?
Tento explicar o meu querer errante
e as palavras me deixam de mãos vazias,
coração vazio.
Acerto no gesto, erro na palavra.
Mudo é o meu destino.
Te perdi pela palavra? Estou perdido.
Apenas um canto sem palavras nesta hora vaga.
Voz que não se pronuncia: um sopro.
Procuro loucamente um verbo intransitivo,
absoluto,
que depois dele sobrevenha a calma,
e o silêncio.
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só de ter nascido
sem querer
me cabe
o meu lugar
de ser
até morrer
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MERCÊS
Nas vilas cruas
se cozinham cérebros
em banho morno, e
nada concerne:
vaga por ali um nativo estranho
que nas horas plenas quer gritar
não sabe o quê,
apenas quer gritar para agitar
as copas das árvores
imóveis.
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DE SUSTO, DE BALA OU VÍCIO
para Vadim
Um homem equilibrado.
Um homem que vê uma estrela e diz: estou vendo uma estrela,
logo estou vivendo.
Um homem que ainda não morreu,
que diz bom dia para saber que ainda não morreu e se aniquila
diante do dia bom e claro e belo e grande.
Um homem sem rosto pousado em calma sobre uma colcha de retalhos.
Um homem em retalhos, olhos de mosca multifacetados,
cego-sensitivo.
Homem nenhum - nenhuma figura - apenas manchas na retina.
Um homem que poderia fazer milagres mas não pode.
Um homem lispector encalhado numa palavra-pedra,
perdendo anos e anos de vida por isso.
Um homem que ouve e lê e vê todas as palavras em todos os lugares:
um homem em busca de revelações.
Um cavalo pastando.
Um bode de óculos aparando a grama do campo de golfe,
quem diria!
Um homem esperando na janela como uma virgem do interior:
olhando a lua apaixonado e louco.
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GHOST LOVER
Cuidado:
meu desejo te rastreia.
Toda fome é dela mesma:
vontade de devorar-se.
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Quanto mais papel-moeda, mais papel-filosofia.
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EU E OUTROS
O outro me observa
- e não me deixa passar.
O outro sou eu,
está em mim,
e não repara em mim
como eu queria.
Por isso, de tanto me obrigar
sou impreciso.
Nem verdade, nem impostura.
Verdade e impostura simultaneamente.
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Hoje não tenho nada.
Vou juntar dinheiro
Vou juntar coragem
Vou juntar amor.
Um dia gasto tudo de uma vez.
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MÚSICA
A maravilha dos ritmos eternos,
apurada poesia: eis o que quero.
Nem show, nem chororô de sax,
nem pandeiro, quero o som inteiro
inclusive o mítico silêncio
tilintando vidros e corcéis
atropelando ventos.
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SOTURNO
Queria ficar alegre
pelo menos por um dia.
Sempre me faltou o dom da alegria.
Pelo menos por um dia
me podia suceder o claro da alegria
só pra me tirar dessa agonia.
me arrancar da sombra desse dia,
me levar onde eu queria
e não podia.
Pelo menos por um dia a alegria
- ainda que tardia.
Um dia, se deus queria,
era possível me livrar desse ingresia,
me animar no fogo da folia,
viajar no vento, ventania.
Pelo menos por um dia
- quem diria!
eu seria dono da alegria.
Eu com ela, ela comigo
por um dia, só um dia
inteiro de alegria.
Isso me bastaria.
Sonhar demais, seria?
Nada mais sucederia
nesse dia. Só alegria.
No outro dia eu voltaria
ao normal de todo dia,
com uma baita saudade da alegria.
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TERMINAL
Coisas tristíssimas brotaram
entre o meu querer e o meu poder.
Fizeram de mim um otimista incorrigível:
nada será pior amanhã do que foi ontem.
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Agora tenho certeza de nem ser parente de deus.
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ERA TEMPO
Passou o tempo do outro,
a minha hora chegou.
Agora sou eu sozinho,
no meio de todo mundo.
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DECLARAÇÃO DE AMOR A MARIA DO CÉU
Pouco ver-te não é triste.
Pungente é tua ausência
quando a vida dá sinal de vida
e não te tenho ao meu lado.
Onde estavas, meu amor,
quando Maria do Céu me encantou
- e eu só pensava em ti?
Onde andavas, meu amor,
quando Maria Parda me fez chorar
- e me perdi longe de ti?
Foi muito demais para eu sozinho.
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SE EU FOSSE VOCÊ
brigava com ela saía pelado tomava cachaça fazia arruaça pisava na bola entrava de sola cortava o barato sentava o cacete batia na cara cagava na moita falava rasgado rasgava o contrato baixava um decreto cobrava pedágio pulava esse muro virava essa mesa soltava os cachorros armava um banzé soprava a fogueira ficava uma fera tacava pimenta criava um rebu tocava punheta tomava no cu amarrava essa égua fumava maconha mijava no tanque metia a colher cantava de galo trancava com chave roía essa corda fazia pirraça pulava do oitavo tomava mais uma ficava na boa pensava direito botava uma pedra tentava esquecer passava por cima tirava de letra matava no peito jogava pro canto deixava pra lá partia pra outra pegava essa estrada sumia no mapa saía correndo ficava mais calmo pintava esse rosto mudava essa cara passava batom usava colírio não dava bandeira fazia checkup pegava no sério tocava um negócio abria um boteco comprava uma casa plantava batata nadava de costa deitava na cama rolava na fama transava uma ioga gozava essa vida matava essa aula ligava essa trompa tirava essa roupa entrava na dança botava mais fé andava no vácuo voltava pra casa mudava o canal não dava conselho virava esse disco calava essa boca fechava a matraca parava com isso
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Será que uma bomba explode?
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
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Finalmente saiu do armário. Vivas!
ResponderExcluirPaulo Fatal
Grande Sávio! Adorei. Vou lendo aos poucos para não gastar tudo de uma só vez. Grande abraço.
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