ou: DEUS É O DIABO
Hoje amanheceu um belo dia vazio, propício ao consumo de ventos. O trânsito de automóveis não flui com a mesma normalidade. Ressaca de assassinatos. Nenhum pedido de resgate. Nenhum alerta ao corpo de bombeiros. A polícia descansa. Um homem sem ninho se recolhe no vácuo de notícias, reclama um decreto de calamidade, reza para que amanhã despenque um avião dos céus e entre as vítimas se encontre um vago parente próximo.
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Naquele tempo os homens andavam inebriados por alguma estranha onda que parecia ter o poder de arrancá-los do inferno em que viviam. Teciam frases como quem dá ração aos porcos. Fabricavam orações. Idolatravam a palavra da salvação. Acreditavam piamente que o universo lhes daria o que desejassem com fé e que o sucesso lhes seria concedido na medida do seu merecimento. Não se esmeravam por merecê-lo. Exalavam o bafo de cavalos ocupados. Trotavam em direção ao breu do céu.
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Tudo e Nada. Sopram-me fados renitentes, derramam vícios eruditos sobre o meu ofício, pelejam contra minha fé, me atraem e me repulsam – o tudo e o nada. Quero seguir os entrementes, a tessitura do drama. Acabo interrogando a origem da vida e a promessa da morte. Nada me acalma, tudo me devolve ao tormento da minha pobre filosofia. Nenhum registro de pane emotiva nessa existência calma e subalterna ao poder de tudo e de nada. O caos é soberano. A situação prossegue.
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O caçador exímio não se contenta com alvos fáceis. Seu código de ética não lhe faculta agredir a inocência dos descuidados. Antes de arremeter contra sua presa, o predador obriga-se a produzir um sinal de alerta. A arte da caça manda provocar o pânico, pressentir o rito da escapada, gozar o teso muscular do alvo que se esquiva. Esta é a delícia do caçador. Alvejar pelas costas, sem o susto da premonição, fere o mais elementar preceito do jogo persecutório. Negar à caça a chance de fuga ou retaliação é ato indigno do caçador ético. Pior: condena-o à inglória inominável de um dia deixar-se abater pela morte natural. Glória é morrer na luta.
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Há os que acham tudo divino. E os que enxergam a mão do demo em toda parte. Eu convivo com deus e o diabo na terra do sol. Acho tudo maravilha, enxofres e jasmins.
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Sonho juntar em mim todas as outras partes desgarradas de mim. Partículas do meu inteiro particular. Matéria do meu sangue, fonte da vida que corre em minhas veias, que me nutre, que me cresta, me dá sede. Hoje não tenho idade. Acho graça de viver. O tempo inscreve em minha pele tristezas e alegrias rupestres, nascidas de todas as eras. A terra é o meu berço, minha origem. A poeira é terra dando adeus. Mas é de barro que se faz meu sonho: de esperar a chuva.
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Rejeitar a idéia de deus é o sinal mais evidente do limite da mente humana. Quando não se compreende o mistério da obra universal, convém atribuí-la a deus, ao menos em reverência ao caos engendrado nessa obra. Não ao deus das profissões cegas de fé, mas ao deus gerador da matéria, fonte da energia e ordenador do movimento perpétuo. Acaso que deus é esse? Não é possível alcançar o seu mistério. E qual é o problema em conviver com o mistério admitindo a sua presença inarredável na equação do nosso imenso esforço de entender esse mundo? O limite do homem é a impossibilidade de admitir tudo e qualquer coisa que não seja capaz de compreender e explicar. O mistério habita entre nós. E nos convida a participar da obra da criação. Não há como recusar o ofício.
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Amar não é preciso. Às vezes, sem aviso prévio, uma força de atração muda a órbita dos planetas e o tempo vai para o espaço. Nós que vivíamos sobre um disco plano, à borda de abismos insondáveis, mergulhamos no vácuo da paixão e voltamos ao ponto de partida. Outras luzes, outras conjunções. O que jazia inerte à beira do caminho emerge de repente e sinaliza marcos de restauração. Dormimos ultimatas e acordamos primatas, graves de filosofia, escovando os dentes e interrogando a existência diante do espelho. Tudo porque um cometa atravessou o nosso céu e - nada como um dia após o outro – um salto quântico se anuncia para as próximas horas. O mundo nunca mais será o mesmo.
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Em caso de emergência, sustentar o silêncio. Buscar palavras que sempre existiram no ar, na voz dos animais, nas águas, no coração das pedras. Pressentir o som da pronúncia antes de se pronunciar. Poupar o próximo das reiterações, a não ser para recompor convenções. Devolver à palavra o seu sentido original para que ela possa suportar conotações sem perder o senso. Fazer uso da matéria elementar para cifrar a nota do cotidiano. Não se deixar transportar pela emoção, a menos que ela tenha manhas de provocar o riso ou revelar o ridículo da existência. Ou simplesmente calar e confessar que faltam palavras.
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Passado o susto dos trovões, o vivente empina a fuça e se encanta com o azulão do firmamento, o cheiro bom da magnólia, a magia do negro manto estrelado, a possibilidade de esmerar-se na caça, às vezes não sendo possível saciar a fome do seu desejo, mas sempre aprendendo uma nova técnica de conquista ou resignação. Dependendo do revés, a vida pode crescer ou encolher.
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Custou mas chegou. A humanidade começa a desconfiar que nem toda matéria tem cor, tem sabor, tem textura, tem volume acessível aos seus sete sentidos. A ciência finalmente se vulgariza. Inaugura-se um novo sonho alquímico: o poder de atrair ou repulsar a energia quântica pela força do pensamento construtivo e da querência. Tudo sob controle. Indiferente à proliferação das seitas, a famigerada dama continua afiando a foice para a ceifa inexorável. Amanhã será outro dia.
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Com o cérebro partido em hemisférios, os animais superiores tentam se ajeitar em seus dois cômodos. Procuram caminhar em equilíbrio, perder a compostura causa muito desconforto. Uma mão procura a outra, precisa compensar o gesto opositor. O mínimo tropeço é capaz de tirar o sono desses animais. Perder o prumo pede internação e terapia. Louco é o animal que não se ajusta a esta bipolaridade, ficará marcado por cortes e mutilações. O doido se adivinha pela atitude polar e solitária. O gesto não correspondido pela outra parte – mensagem sem resposta – é o primeiro sintoma do estado de loucura. A lei exige simetria. Este é o padrão da criação, o código de barra que vem de fábrica e precisa ser interpretado pelas máquinas leitoras. Portanto, animais bipolares, tratem de alinhar-se aos seus hemisférios. E não desprezem suas gravatas. Elas são o fiel da balança.
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Aos mágicos e adivinhadores se reserva a quarta vala do oitavo círculo do inferno, onde ainda têm muito o que fazer. Sublimar a realidade, esse tributo insuportável. Inventar a alma. Iludir pobres diabos a quem nunca tocou a mensagem do real. Aliviar o peso da matéria que pesa sobre a sua existência condenada à culpa sem esperança de redenção.
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O que eu amei demais foi sua coisa inteira, sua arquitetura multimídia, seu design contemporâneo do porvir, o seu poder de aparecer e sumir do mapa sem perder o seu lugar em cena, a capacidade de dispor o corpo a serviço da sua alma, usar máscaras que são a sua cara, pronunciar o som das palavras com o timbre das pedras e dos metais.
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Longos dias e noites eu ouvi estarrecida maravilhas e misérias eloqüentes. Meu semblante congelava o riso e tecia músculos dormentes entre o espelho e a espada. Longas horas eu gastei me devorando de mistério e culpa, bolinando o feminino rejeitado em líricas lembranças e promessas pérfidas. À minha frente, o macho em plena onipotência, fragilíssimo, quebrável em mil cacos de demência santa. Longa estrada percorri sedenta de mim mesma, estranha de mim mesma, nula e plena. A sabedoria, a calma, o movimento, onde andavam? e por que me abandonavam nessa estrada triste? Eu, que era doce, me amarguei e fui tentada pelas artes da esperteza. Dentro de mim talvez morasse há muito tempo um duende mórbido. Foi quando coloquei de molho minhas barbas, tripulei embarcações do coletivo inconsciente, revirei baús de antigos mapas. Novos rumos apontaram para a ilha do farol em pleno mar mediterrâneo, eu náufraga. De repente, brotaram palavras duras, um jorro incontrolável de memoriais palavras querendo nascer a qualquer custo, a fórceps, marreta, dinamite, qualquer jeito que me libertasse para sempre deste jugo insano e projetasse em minha vida outra vez, de novo, o sentimento do mundo, vasto mundo.
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só pode existir uma explicação para a pessoa que cisma de viver escrevendo: uma inarredável urgência de traduzir o sentido da vida e descobrir que para isto tem por único recurso resgatar a raiz de todas as palavras que já ouviu alguma vez em algum lugar e que não foram suficientes para esclarecer o que ela queria saber da vida apenas lhe deram uma vaga noção do que ela suspeitava e então tentar recompor a trama da linguagem para imaginar a vida a partir das palavras que ela registrou desde o primeiro sopro e que depois de um certo tempo passaram a não prestar um bom serviço ao seu entendimento das coisas e aprender a pronunciar de outro modo essas palavras já sabidas que de repente assumem um novo sentido para ela e registrar sobre uma folha branca de papel ou uma tela vazia de computador essa nova pronúncia descoberta com prazer terrível e é muito provável que dessa tentativa ninguém jamais tome conhecimento além dela própria esta pessoa que cisma de viver escrevendo
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
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