quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

ANIMALIA (contos)

AMOR DE PACA

Tá certo que o Ademar me pegou numa hora de fraqueza, sentindo falta de homem no meu canto. Foi chegando de mansinho, sem forçar a barra, até que um dia seu olhar brilhou no meu e eu senti a fome dele crescendo pra cima de mim, desesperado de explorar a minha gruta. Fazer o quê? Perdi a pose. No meu lugar você faria a mesma coisa, minha filha, porque o cara é bom de serviço e hoje em dia competência é artigo raro, você sabe muito bem disso, lembra aquele bonitinho que te decepcionou pela falta de poder? Pois é. Acabei dando mole e quando vi já era tarde, estava amando o cafajeste, pior ainda: dependendo dele pra ser feliz. Uma coisa é um romancezinho desses sentimentais para enganar inocente, gozar são outros quinhentos. E eu gozo demais com o Ademar, o safado tem a manha de me deixar de quatro. Sabe a que horas ele gosta de me procurar? Você não vai acreditar: cinco de manhã. Bate a campainha lá em casa todo dia de madrugada, diz que gosta de pegar a paca quente no ninho, uma tara dele, sei lá. Tive que me sujeitar. Depois da transa, uma duas três vezes, ele toma uma chuveirada, enquanto eu sirvo um cafezinho na cama e às 8 e meia ele já saiu para o trampo dele, me deixando bem disposta para enfrentar o dia. Virou meu vício, minha ginástica matinal. O que ele faz na vida? Sei lá, diz que é corretor imobiliário, não quero nem saber, para mim ele é o meu trepador profissional, o bombeiro que vem desentupir os meus canos todo dia, o meu roto-router, meu massagista, meu psicanalista. Por falar nisso nunca mais procurei o Dr. Edvaldo, joguei fora o meu rivotril, ando com a cabeça boa, até a enxaqueca sumiu. Recomendo o tratamento, Marinalva! É uma maravilha! Te emprestar o meu Ademar? Que que é isso, minha filha? Vai à luta! Esse é só meu, ninguém tasca, é o meu mucamo e o meu feitor, faz de mim o que quiser. O quê? É claro que eu pago bem. Ele nunca exigiu, tem a delicadeza de sempre me pedir emprestado, diz que vai pagar logo que puder. Não faço questão, dinheiro serve pra quê? Não é pra dar prazer? Graças a deus a pensão que recebo do falecido dá e sobra. Ai, meu deus, quanto tempo eu perdi gastando com esses pacotes turísticos a Maceió sem saber que a felicidade estava aqui mesmo, pronta pra bater à minha porta todo dia de manhã e me transportar para o país das maravilhas, sem museu e sem igreja para visitar, sem queimadura de praia, sem aquele cheiro horrível de hotel 3 estrelas. Ficando doida, eu? Ai, Marinalva, você não sabe o que é bom. Olha aqui, minha filha, já são 11 horas, vou dormir, tenho que descansar, ficar prontinha pro meu Ademar, daqui a pouco ele chega. Tchau, me liga na hora do almoço, tá bom? Preciso comprar um terno novo para ele no shopping, você me ajuda a escolher?

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CADELA


Quis viver com ela para sempre e ela me disse: fica à vontade e vai embora quando for a hora. Quis morrer com ela e ela falou: agora é cinza, meu tempo de morrer já é passado. Tentei encontrar a palavra justa e não achei. Fiquei perdido ao seu redor, cego de luz, tonto de querer amar. Nunca me senti tão perto de uma estranha. Somente a ela ousei pronunciar a fórmula banal, te amo, e ela não me acreditou. Traçou um diagrama de macroeconomia para elucidar o meu amor patético. O buraco é mais em baixo, ela falou, amar são outros quinhentos. Propus fechar contrato de seis meses, com cláusula de prorrogação, mas o tempo foi para o espaço. Tudo se transformou em nada. Mera inscrição do transitório. Pós-matéria. O que sobrou? Salgar, selar e congelar a carne, filha do carbono e do amoníaco, para a rápida hora do banquete inacessível aos cães.


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CABRITA

Gostei do jeito que ele chegou varrendo o ambiente numa visada larga, sentou na primeira vaga, pendurou o chapéu na ripa da cadeira, pediu uma cerveja sem extravagar no gesto, me semblou homem decente. Tem uns que já entram com panca de bacana, sabe aquele tipo que olha por cima como se quisesse sem querer? Puro medo, veneno brabo. O cara vem aqui atrás de puta e morre de medo de puta, acha que é raça baixa, perigosa. Esse a gente atura pela paga, gosta de mostrar que tem dinheiro e se acha no direito de ser rude com mulher de zona, tratar no solavanco, mas em compensação despeja nota de cem na cara da gente, quase com raiva. A mulherada saca logo, tenta escapulir, mas a regra da casa é clara: freguês não pode ficar sozinho na mesa por mais de dez minutos, tempo suficiente para tomar fôlego no ambiente. Depois disso passa a valer o rodízio e a menina da vez tem que se chegar com um chamego e uma conversa de boavinda. A maioria pensa que a gente gosta é só de pica e de dinheiro, muito de vez em quando rola uma conversa boa que faz a noite mais apetecível, de pica a gente sente até enjôo pela fartura de toda noite, mas atrás dela vem dinheiro e profissão é profissão, não se recusa por capricho bobo.
Aquele não. Tinha o dom da simpatia, um sereno que chamou a atenção da tropa da casa. Lurdinha ameaçou tomar a dianteira mas era a minha vez no rodízio, espetei nela o osso do cotovelo e me precipitei para a mesa do elegante. Que dama não gosta que o cavalheiro se levante e puxe a cadeira para ela se sentar? Foi o que ele fez, e ganhou ponto comigo. Veio desfiando uma conversa rasa, clara de entender, que era viajante, estava cansado de estrada, fazia três meses não via a família, que passava ali na rua por acaso, viu a luzinha roxa e decidiu buscar conforto entre pessoas por quem a vida inteira sempre tinha a maior consideração, mulheres dedicadas à santidade de ofertar prazer e companhia a um sujeito desprovido de assistência, cansado sem ninguém, carente, longe dos seus. Tinha uma voz macia, gostosa de ouvir, e falava olhando bem no fundo do meu olho. Não avançou, não enfiou a mão nas minhas coxas, me carinhava só com o jeito de falar. Para esse eu dou de graça, só cobro a taxa da casa, foi o que pensei primeiro. Coisa difícil de acontecer na carreira prática, esquecer que é puta e lembrar que é gente. Naquela noite ele me deu o dom, quem milita na praça sabe o quanto vale essa prenda.
Caiu ficha nova na maquininha, a voz de Altemar Dutra cobriu a dele: veja só que tolice nós dois brigarmos tanto assim. Ele ouviu calado, respeitoso, de vez em quando fechava os olhinhos de saudade, me deu vontade de passar a mão no seu cabelo mas parei no meio da intenção, senti pudor não sei por qual motivo, e olha que pudor de puta é coisa séria, comichão de amizade periga virar paixão. Aí ele me chamou pra dançar, enrolou meu corpo com firmeza, encostou seu rosto e me deixei levar pelo salão ao seu comando, dava para sentir a inveja das meninas e uma coisa crescendo lá em baixo, cutucando o meu desejo. Ficamos assim abraçadinhos três boleros num bate-coxa muito mais gostoso do que trepada em colchão macio. Era tudo o que eu queria, rezei a deus para retardar a hora do consumo, adiar o rito de subir ao quarto
para extrair o carnegão, me deu o luxo de não me entregar muito fácil logo assim no primeiro encontro, vê se pode, coração de puta às vezes finge que amolece.
E ele teve a sensibilidade de compreender minha condição. Levantou da mesa, arranhou os meus cabelos com a ponta dos dedos, pegou a mão da Lurdinha e subiu a escada com ela para o quarto. Nem passaram vinte minutos e os dois voltavam ao salão, ele com um sorriso de satisfação que lhe dava um tom meio palhaço no rosto moreno, nisso eu nem tinha reparado antes. Pagou a conta e foi embora sem me dar adeus.

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O RABO FELPUDO DA RAPOSA

Ferrugens, trincas na parede, pane de telefonia, infiltrações, goteiras no telhado, invasão de marimbondos, trepadeiras vorazes, fiações avariadas, fusíveis de imprecisa resistência, portas crestadas, lascas no adobe das paredes, madeiras podres de chuva, cortinas rasgadas no salão de banho, efeitos deletérios do tempo sobre a matéria perecível – tudo a exigir urgente intervenção. Está passando da hora de tomar providências enérgicas – gritou Helena após o jantar – senão a casa cai. E deu um murro na mesa.
Durante exatos 40 dias, ela se dedicou ao projeto da reforma sem descansar um minuto. Redesenhou o jardim, refez o caminho das pedras, mandou plantar cerca viva, comandou, de chicote na mão, um exército de operários especializados em reforma e restauração: consertos, podas, replantios, correções da acidez do terreno. Ordenou a dedetização da casa, revisou os circuitos elétricos, contratou bombeiros para sondar encanamentos, pedreiros para repintar os muros e impermeabilizar paredes, trocou as telhas quebradas na última chuva de granizo. Nosso sítio virou um canteiro de obras, mas valeu a pena.
Ficou uma beleza! – comentei ao retornar de uma providencial viagem de trabalho que me poupou da sua fúria restauradora. Ela me olhou de cima a baixo, um olhar estranho, passou a mão sobre uma ruga do meu rosto, sorriu e agradeceu: - Gostou mesmo, meu bem?
No dia seguinte Helena saiu cedo e voltou com uma sacola recheada de compras. Aqui, meu lindo, comprei pra você, me passou um shampoo para disfarçar os cabelos brancos; ninguém agüenta mais aqueles molambos seus, jogou na minha mão três camisas listradas e uma bermuda que mais parecia florada de campo rupestre; abriu uma caixa de creme facial, aplicou um pouquinho nas rugas do canto do olho e começou a ler na bula os milagres do rejuvenescimento à base de pepino. Comecei a desconfiar que a sanha reformista estava longe de acabar, mas só fui ter certeza mesmo quando ela me passou um papelzinho: toma, marquei consulta com o Dr. Romero, quarta-feira às 3 da tarde, levei aquele retrato seu e ele falou que é coisa à toa consertar esse gancho do seu nariz, dar uma empinadinha nele. Sem dúvida, meu amor agora tinha projetos de me reformar. Queria consertar minha arquitetura barroca, passar verniz no opaco do meu feitio, patinar minha fachada castigada pelo tempo.
Relutei mas aceitei me refazer só para agradar Helena. Agora, me olhando no espelho, sinto que não sou mais eu, mas em compensação Helena anda muito mais feliz comigo.


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OLHOS DE VACA

Existe muito pouca diferença entre os olhos da vaca que eu conheci na fazenda do meu tio e os olhos de Percília. Ambos falam de uma tristeza resignada a uma sina que não ousam confrontar, como se não tivessem a mínima chance de mudar o rumo das coisas que notoriamente não agrada a nenhuma das duas. Os de Percilia revelam uma melancolia mais acentuada pelo traço da boca, crispada e curvada para o chão, talvez pelo fato de muito procurar sem encontrar um jeito de escapar ao seu destino, o que lhe deu pela vida afora uma triste fama de queixosa e reclamante contumaz. A vaca que eu conheci na fazenda do meu tio também me parecia sem a mínima noção do que fazer para evitar sua ruína, mas sustentava uma postura digna em sua ruminação silenciosa, me dava a impressão de estagiar um rito de preparação, como se já previsse a sua hora de deixar-se conduzir resignadamente à trilha do matadouro, e nem por isso cabia qualquer queixa, aquele era o seu destino traçado. No mais são iguais, os olhos de Percília e os olhos da vaca. E fui me apaixonar logo pela Percília, a vaca da fazenda do meu tio foi só um lampejo de admiração, desconfio que teria sido mais feliz com ela mas dessas coisas a gente nunca pode ter certeza absoluta.

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A HORA DA LOBA

Quando ela me abraçou senti a dureza dos seus ossos sob a pele e não pude deixar de pensar no viço daquele corpo de trinta anos atrás, cheio de carne e sangue latejante que eu sugava com furor adolescente. Ela também gostava de me pegar, me usava com proveito, sabia tirar prazer de mim. Agora estava ali como um balão vazio entre meus braços, demorou o rosto colado no meu, me apertou com força, me beijou.
- Câncer, soprou no meu ouvido sem que eu perguntasse nada, perdi doze quilos em três meses.
- Finalmente você conseguiu, respondi meio sem jeito, e nem precisou fechar a boca.
Zamira sempre teve gana de traçar deus e todo mundo. Não era gula, era uma vontade de comer, um apetite voraz que marcava sua fama no território. A turma se divertia em vê-la diante de um prato de comida, manejando os talheres como operária de fábrica, lambendo os beiços, estalando a língua, ronronando de prazer. A mesma sanha que espantava os homens que ela cismava de caçar em suas noites de loba. Não qualquer um, é bom que se diga. Fazia questão de escolher a dedo, observava, conversava, selecionava com critério e só partia para cima quando tomava opinião. Caçava o suficiente para matar a fome, não seduzia para colecionar. Poucos resistiam ao encanto de sua beleza rara, uma mulher à frente do seu tempo, nem aí para os tabus da burguesia, livre e dona do seu querer. Nunca foi vulgar, vestia-se com elegância simples, tinha a manha de conduzir seu corpo com graça, olhava nos olhos da gente, não sabia fingir, falava claro o que tinha que falar.
Vinte anos se passaram e a distância não tinha dissipado a presença de Zamira em minha vida. Vivia pensando nela, quantas vezes me sucedia indagar o que ela faria em meu lugar antes de tomar uma decisão, talvez porque só com ela me tinha sucedido a delicada experiência dos amantes que não querem pertencer um ao outro. Um belo dia partiu para Barcelona sem dizer adeus, perdemos o contato. De volta ao Brasil depois de longa temporada, ela telefonou marcando encontro e agora estamos aqui na calçada em frente ao teatro da imprensa, enlaçados num abraço terno, olhando-nos com certa estranheza e alguma intimidade que nossa história comum ainda nos concede apesar de tanto tempo separados. Eu tinha sugerido assistirmos a uma nova montagem de Molière, ela vacilou – Tartufo, de novo? Não é melhor tomar um vinho e conversar? Claro que era, dobramos a esquina e entramos no Saloon, velho ponto de encontro da turma, à la recherche.
Mesmo doente ela não tinha perdido a chispa, aquele jeito de agitar os braços e jogar os cabelos para trás enquanto fala, a mesma energia solta, ainda dava para perceber o brilho do seu olhar por trás do véu que começava a turvar a fonte original. O rosto descarnado deturpava a beleza dos seus traços e projetava seus dentes branquíssimos para fora da boca miúda. Falou da sua vida em Barcelona, de uma solidão incompatível com o seu jeito fácil de fazer amigos, da sua tormenta por não conseguir aculturar os machos da Catalunha e acomodá-los ao seu gosto de comer, sua inaptidão para firmar contratos de acasalamento, mencionou alguns romances sem conseqüência e, só para me deixar chocado, anunciou sua decisão de descansar da luta e viver em castidade.
Conta outra, debochei, você não conseguiria. Mas ela acabou me convencendo: três anos sem macho, acredite se quiser! E olha que não me fez falta por lá, só agora no Brasil é que voltou aquele velho comichão de caçar, mas aí adoeci e o desejo ficou no limbo. Senti uma ternura imensa por ela, peguei a sua mão, fiz um carinho com a ponta dos dedos sobre os seus cabelos ralos, enfraquecidos pela quimioterapia. Ela se esquivou, pedimos mais um vinho.
Carcinoma de colo de útero. Neoplasia do órgão de reprodução feminino. O ninho da maternidade injuriado por células que insistem em reproduzir-se sem controle. Ela tentou associar sua renúncia ao sexo, sua falta de vontade, à sorrateira instalação da doença, ainda que não produzisse sintomas visíveis. Chegou a perder a compostura, deixou escapar a queixa: por que logo eu? Você e mais milhões de mulheres com câncer de útero – respondi sem intenção de consolar – você e outros milhões de homens com câncer de próstata. Não há eleitos nesse processo, o acaso decide de acordo com sua herança genética, seus hábitos de consumo e sua capacidade de lidar emocionalmente com a angústia de viver. No mais, mais cedo ou mais tarde, todos nós adoecemos e isso é que é difícil admitir, que também somos frutos que maduram, caem do pé e apodrecem.
Zamira ficou um tempo em silêncio, olhos fixos nos meus, um sorriso suave nos lábios. Tem razão, disse, somos passageiros nesse trem, mas não pense que estou amargando por querer amargar, é que essa coisa causa disfunções, os hormônios se alteram, o tratamento é violento, a gente acaba perdendo o prumo. Caí na mão do sistema de saúde, me entreguei completamente, só agora consegui recuperar a autoridade e já decidi: não faço mais radio nem quimioterapia. Vou deixar rolar até o fim, só não posso esquecer de carregar na bolsa umas drogas para amenizar a dor que é danada. Se estou rumando para o fim vou tratar de fazer isso com dignidade, a céu aberto, e não na prisão dos hospitais, até a última força que me sobrar. Sabia que a Bélgica recebe hoje um grande fluxo de turistas, doentes terminais sem esperança de cura, em busca de uma morte misericordiosa? Lá a eutanásia é legalizada.
Achei que devia interromper: tudo bem, mas antes de tomar o rumo de Bélgica e o caminho da morte, proponho uma trilha alternativa: vamos lá pra casa, levamos mais um vinho, faço um jantar para nós, vemos um filme, você dorme por lá, acordamos amanhã e vamos matando a saudade com calma. Não vai ser num único encontro que vamos dar conta desse vácuo. Você já me contou quase tudo, como se essa noite fosse terminar em dois beijinhos e até daqui a mais trinta anos, meu bem. Temos tempo, e além do mais hoje não é um bom dia para morrer.

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